sábado, 15 de março de 2008

A vida secreta de Galdério

(crônica de Alma Welt)

Nosso jardineiro, charreteiro, seleiro e faz-tudo, Galdério, veio jovem trabalhar para o meu pai, no começo dos anos 70, junto com sua irmã Matilde que viria a ser a minha amada babá. Galdério era um rapaz meio estranho, mas leal a toda prova. Solitário, nunca soubemos de um namoro seu, ou de qualquer caso dele relacionado a amor ou sexo. Nunca foi visto no bordel de Rosário do Sul, a cidade mais próxima da nossa estância, onde alguns peões nossos, de folga, faziam suas incursões, comentadas depois de maneira picaresca por outros, até chegar nos ouvidos da Matilde que fazia verdadeiras catilinárias na cozinha contra esses costumes “depravados” dos peões... Eu, guriazinha, ouvia aquelas coisas, perplexa, sem compreender, mas com a imaginação voando por ambientes que eu nunca veria, mas que de alguma forma me eram estranhamente familiares. Até hoje me pergunto: teria eu sido prostituta em alguma outra encarnação? Provavelmente sim. Mas não quero perder o foco. Estou contando sobre o Galdério.

O solitário factótum tornou-se imprescindível no elenco coadjuvante da nossa estância e seu devotamento ao Vati, à Mutti, e principalmente a mim, chegou muitas vezes a comover. Respeitoso e solene à sua moda, mas comparável a um mordomo de cinema inglês não fora o aspecto, isto é, as bombachas , os bigodes caídos e o carregado sotaque gaúcho, é realmente uma figuraça.

Recentemente, há poucos meses, eu descobri algo a seu respeito que me comoveu mais que tudo. Ouvi, quase sem querer, uma conversa de sua irmã com ele, atrás da porta do quarto da Matilde. Ela dizia:

–O que vais fazer, seu cabeça-dura? Estamos aqui para o resto das nossas vidas. Este é o destino que nos coube e ele é muito bom. Amamos esta família. O que deu em ti? Sair daqui? Tu? Ires embora? Mas se aqui já és imprescindível, e a Alma te aprecia, te trata bem, sempre foi boa para contigo. Aliás, com todos. Nossa princesa é muito boa, nunca maltratou ninguém. Porque queres ir embora?

–Minha irmã, não agüento mais, já te disse. Eu amo Alma com respeito, mais que a minha vida. Mas depois que tive aquele sonho não posso mais encará-la. Não posso sequer estar com ela ao meu lado na charrete. Não sou mais digno. Eu não queria, não queria ter visto ela como vi. Mas a princesa se expõe, tive que despedir peões que viram ela e ousaram comentar. Ela anda assim, sem roupa, na pradaria, no bosque, nada assim no poço da cascata. Eu não queria ter visto, mas quando aconteceu eu fechei os olhos, mas “abri eles” logo. Abri eles! Agora não tenho mais paz. Sonhei aquele sonho e agora não sou mais digno de trabalhar para ela. Tenho que ir embora.

Matilde fez um silêncio demorado, depois retrucou:

–Galdério, meu irmão, isso não é a solução. Tens apenas que ir a Rosário procurar o padre Tarso e confessar-te, arrepender-te e fazer a penitência. Só isso! E tirar para sempre os maus pensamentos dessa tua cabeça-dura. É o que tens a fazer, seu Galdério.

Afastei-me daquela porta, emocionada que estava, com o coração batendo forte. Confusa e até envergonhada, dei-me conta de quanto eu devia perturbar com o meu comportamento aquelas pobres almas pudicas, simples e ingênuas. Eu sei, não há maldade em mim, mas a vida e os costumes são mais complexos do que eu desejaria. Devo ter sido uma tortura para o pobre Galdério, há muito tempo.

Quanta coisa mais este peão deve ter visto, desde a minha infância com Rôdo! Meu Deus, perdoai-me, porque nunca soube bem o que faço!

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