terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A Lei do Mundo (mini-crônica de Alma Welt)

Quando eu era guria pequena perguntei ao meu pai por quê algumas pessoas trabalhavam para outras que não trabalhavam, como nós. Meu pai ficou sério, depois sorriu levemente e respondeu: "Minha filha, essa é a lei do mundo. Muitas pessoas trabalham para que poucas pessoas possam ficar sem trabalhar para poder pagá-las e elas sustentarem suas famílias..." Confesso que a resposta me deixou um pouco confusa, mas me fingi de satisfeita. Depois, passados muitos anos percebi que meu pai foi tão cínico quanto sincero na sua resposta. Mas o compreendi melhor quando li a frase de Nietzsche: "As grandes coisas exigem que não se fale delas. A menos que se fale delas com grandeza. Com grandeza quer dizer: com cinismo e inocência.
(Alma Welt)

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

O Gaúcho Prestativo (crônica de Alma Welt)

"Quando eu era adolescente, correndo como sempre pela coxilha me afastei muito do casarão e de repente lembrei-me de que com o tempo do retorno chegaria atrazada para o almoço e seria repreendida severamente por minha mãe, talvez mesmo ficasse sem a refeição. Foi quando, providencialmente (eu pensei) apareceu do nada um gauchão, peão de nossa estância, homem de uns quarenta anos montado no seu cavalo, se oferecendo gentilmente a levar a "patroinha" de volta. Apeou, pegou-me pela cintura e instalou-me em sua sela montando a seguir atrás de mim, enlaçando com um braço minha cintura, a outra mão na rédea. O peão conduziu seu cavalo a passo, lentamente demais pra a minha quase aflição de chegar a tempo. Entretanto quando ainda estávamos à certa distância do casarão já avistado, ele apeou e deixando-me na sela continuou a pé puxando o cavalo pela rédea até encontrarmos o meu fiel Galdério em frente à nossa varanda, e que o olhava severamente. O peão tocou o chapéu com dois dedos e disse: "Compadre, encontrei a patroinha meio perdida, com o risco de se atrazar para o almoço. Está entregue a princesa. Com a licença de vosmecê, volto ao trabalho."
O Galdério nada disse, olhando fixamente nos olhos do peão, com a mão pousada na faca de prata de sua faixa.
Agora tantos anos depois desse episódio, lembrando-me das coisas que senti naquele trajeto, um certo incômodo ligeiramente excitante atrás de mim na sela, me ocorreu que a candura pode bem conviver com a inteligência. O que nunca convive com a ingenuidade é a esperteza, que essa tem bem mais afinidades com a malícia...

(Alma Welt)

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Livros Proibidos (crônica de Alma Welt)

Quando adolescente acostumei-me a acordar de madrugada, programando minha mente para despertar com os galos, e sair do meu quarto pé-ante-pé, deslizando como uma sombra para ir à biblioteca e "investigar" os livros ocultos ou disfarçados do Vati. Ali descobria coisas incríveis, por vezes estarrecedoras. Ali folheei e li por pedaços vários livros do Marquês de Sade e o grande volume do psiquiatra austríaco Wilhelm Stekel, "Sadismo e Masoquismo". Eu frequentemente me chocava, e tinha sonhos conturbados e até pesadelos. Mas minha curiosidade era maior. Devorei as obras de Nietzsche e foram elas que me denunciaram, pois levei o "Anti-Cristo" para a cama, e a Mutti, notando o meu deslizar noturno que atribuiu inicialmente a um suposto sonambulismo, evitando despertar-me seguiu-me e flagrou a minha leitura proibida. Foi um escândalo. Nunca a vi tão furiosa com meu pai, exigindo dele que queimasse aquele livro "pérfido", "demoníaco", e muitos outros. Meu pai se recusou a fazê-lo mas não teve outro jeito senão escondê-los, trancá-los. Mas sua piscadela cúmplice me tranquilizou. Depois, uma hora, sentada no seu colo, ele me diria: "Alma, tu sempre encontrarás esses livros, não tenhas pressa. Talvez tua mãe tenha em parte razão. Não enche a tua cabeça tão cedo com a face negativa ou problemática do mundo. Ela virá a ti no devido tempo sem tirar-te o sono. Lembra-te minha filha, o conhecimento de nada vale se não tornar o homem mais sereno, talvez mesmo mais feliz. Vamos, vamos, durma durante a noite e corra no jardim e na coxilha de manhã. E eu te prometo que tudo o que me perguntares, responderei, aberta e honestamente... (Alma Welt

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

A Morte da Açoriana (crônica de Alma Welt)


Pintura de 2008 de Martha Erlebacher

A Morte da Açoriana (crônica de Alma Welt)

"No meu aniversário de 16 anos, a Mutti (minha mãe) estava doente e andávamos pela casa pé-ante-pé para não fazer ruído e falávamos baixo pois a dor exalava através de sua porta, e o Vati, a Matilde, Lucia e Solange se alternavam num entra-e-sai daquele quarto, nos cuidados à enferma. Menos eu, "a princesa" a quem queriam poupar, ou de quem respeitavam a diferença que sempre pautou as minha relação com a "Açoriana". Mas a verdade é que naqueles dias, mais que nunca eu me sentia culpada por não amá-la e até mesmo por a estar matando, que é do que meu inconsciente me acusava. O sofrimento de minha mãe me perseguia, como a sua cobrança de normalidade e bom comportamento convencional o fizera desde a minha tenra infância. Sua dor agora era a minha, me seguia nas minhas andanças no jardim e até mais longe, na coxilha, ao redor do casarão.
Então, uma tarde, eu ouvi um grito através daquela porta, que me estarreceu, logo seguido do meu nome chamado de forma angustiada, suplicante, que contrastava com a forma irritada usual de sua relação para comigo. Corri para o seu quarto e sem mais hesitar abri e entrei a ponto de vê-la na penumbra, semi-erguida contra os grandes travesseiros, os olhos arregalados para mim, com o braço estendido em minha direção, para logo cair para trás, imobilizando-se, de olhos abertos. Agarrei sua mão já meio fria, e explodi em lágrimas. Teria ela me perdoado? Que significou aquele chamado, aquele braço estendido por segundos, em minha direção? Eu teria o resto da vida para descobrir em mim mesma através do rastro de pequenos e grandes desastres que formaram a história da nossa relação, o significado do seu gesto extremo, que aparentemente fora dirigido a mim... e a ninguém mais. Meu coração achava, báh! queria... que aquilo só podia ser perdão. E o meu amor, finalmente..." (Alma Welt)

domingo, 12 de fevereiro de 2012

O fim e o começo do Mundo ( crônica-relâmpago de Alma Welt)

"Um gaúcho autêntico? Quê quer dizer, senhor? Todo gaúcho que ama a sua terra é autêntico. Mesmo aqueles que se foram ao Rio ou a São Paulo, que aposto estão penando de saudades. Não sei da Serra e do litoral... mas a Pampa, senhor, essa se nos gruda na alma, que aqui é o fim do Mundo mas o começo também... " (Alma Welt)

Onde a vista vai com o vento (crônica relâmpago de Alma Welt)

"Onde começa a Pampa, senhor? Começa onde a vista se comprazer de ir com o vento, e voltar só muito tempo depois. Pampa é uma viagem da alma..." (Alma Welt)