sábado, 12 de abril de 2008

Safira, eu e os ciganos (crônica de Alma Welt)

Safira, eu e os ciganos (crônica de Alma Welt)


Na minha pré-adolescência, na estância, ganhei de presente de meu pai uma vaquinha, a Safira, que ordenhada todas as manhãs fornecia o leite para o nosso café, compartilhado com meus irmãos, naturalmente.
Nessa época, eu já estava empenhada em aperfeiçoar-me no desenho, quer dizer, nas artes plásticas, e passava horas desenhando, principalmente retratos a lápis, para os quais posavam meus irmãos (com exceção da Solange) e outras pessoas da casa. Eu ficava horas esboçando, apagando com borracha e retocando, a fim de atingir a semelhança perfeita com o modelo. Para isso eu era incentivada, como sempre, pelo Vati.
Aconteceu que passou pela estância um povo de ciganos, que fez acampamento próximo ao bosque, com permissão de meu pai, que de um modo geral aceitava a entrada de alguns estranhos, lastreado na sagrada lei da hospitalidade cujo critério e regras eram para mim, ainda, um mistério. Custei a perceber que eram simplesmente baseadas na sua intuição de homem experiente, vivido e sábio.
Curiosa e fascinada por esse povo do qual só sabia alguma coisa pelos livros, como, por exemplo, o “Notre Dame de Paris”, de Victor Hugo (romance conhecido popularmente como “O Corcunda de Notre Dame”) que continha a maravilhosa figura da cigana Esmeralda e sua cabrinha, eu resolvi ir ao acampamento para observá-los de perto, para conhecê-los melhor. Sendo uma guria aventureira e destemida até certo ponto, dirigi-me sozinha, uma manhã, com um lápis, borracha e uma folha de papel, para o acampamento cigano.
Fui recebida entre as tendas e os carroções, logo de saída, por várias gurias de diferentes idades, que me pareceram muito “guapas” embora um pouco sujas, eu percebi. Elas sorriam muito e logo agarraram minhas mãos para lê-las, estendendo as suas para cobrar, simultaneamente, numa espécie de confusão.
Entre elas havia uma, de extraordinária beleza morena, misteriosa, que sorria de maneira enigmática, um pouco irônica, me pareceu. Fascinada, pedi-lhe que posasse para mim, para um retrato que eu faria ali mesmo, na hora, no papel, com o lápis que empunhava. Ela aceitou, sempre sorrindo, com um simples movimento de cabeça, e isso motivou uma verdadeira festa momentânea, atraindo a atenção de muitos que estavam por ali e que me rodearam, sentada num tamborete que me ofereceram, para observar o nascimento do retrato.
Eu me senti inspirada e desenhei mais rapidamente que o normal, embora apagando e retocando alguns traços. O resultado me pareceu magnífico, a folha de papel me foi retirada e circulou de mão em mão, entre exclamações, risadas e sinais de aprovação. A seguir voltou às mãos da retratada que levantou-se de sua banqueta, e com a folha nas mãos aproximou-se de uma mesa que estava ali perto, ao ar livre, e colocando uma espécie de salsichão sobre ela, com uma grande faca afiada, começou a fatiar, engordurando o papel que imediatamente ficou cheio de cortes e nódoas, sobre o meu lindo retrato, minha “obra-prima”. Eu estava horrorizada, e comecei a protestar. A cigana (eu a chamarei Rafisa), sempre sorrindo, respondeu-me simplesmente:

–“Tu já fizeste o desenho, agora o papel serve para outras coisas.”

Os ciganos já circulavam e dispersavam-se, desinteressados. Saí dali, meio desnorteada, e voltei para o casarão, meditando muito, embora ainda chocada.
Vocês devem estar pensando: o que tem a haver a vaquinha que ganhei com essa estória, não é mesmo? Bem, apesar do meu choque e confusão com a experiência do meu primeiro contato com os ciganos, eu resolvi voltar ao acampamento para conhecê-los melhor. E na segunda visita, sempre escondida de minha mãe, claro, eu percebi que algumas crianças estavam muito desnutridas e com manchas esbranquiçadas na pele. Elas me olhavam com grandes olhos que me pareceram tristes, e, condoída eu tomei uma decisão. Fui até o nosso estábulo e voltei puxando a minha vaquinha por uma corda em seu pescoço e a presenteei à mãe da crianças para que fornecesse leite para elas todas as manhãs.
Era um final de tarde e permaneci por ali, percebendo a festa que se armava, com rabecas e um “fole” ou gaita que se reuniam, e vestidos coloridos mais vistosos, com muitas “jóias” nos pescoços, orelhas, testas, pulsos e tornozelos das gurias.
Começaram as danças, e eu me senti inebriada pelas evoluções ondulantes das dançarinas ao som de rabecas tocadas de maneira pirotécnica, virtuosística..
Então (ai de mim!) puxada pelas mãos e instada a dançar com elas, eu me percebi arrastada em farândola, até próxima a uma grande fogueira sobre a qual de repente percebi, à contra-luz, em silhueta negra, horizontal, girando num espeto, algo que me pareceu um novilho, ou coisa parecida. Um arrepio entretanto me tomou, e um pressentimento. Apontei e perguntei, quase gritando: “O quê é isso?”

E alguém me respondeu: “Bueno, é uma vaca, ora, vamos churrasquear, é festa de Santa Sara Kali.”

Dei um grito e desmaiei.

Acordei em minha cama e desatei imediatamente em pranto, inconsolável, cheia de remorso, dor, confusão. Minha mãe aproximou-se do leito e com ar severo (ela já sabia de tudo pelo Galdério que me vigiava sempre à distancia, e que me trouxera nos braços) e ralhou:

–Já sei, já sei, querias o bem daquelas crianças, não é? Mas já te disse muitas vezes: “de boas intenções o Inferno anda cheio!”

Caí num pranto maior ainda. E quereria morrer naquele momento, se não fosse o medo de ir para o Inferno. Afinal, adormeci soluçando, e tive um sonho em que realmente estava no meio do fogo, com a Safira, as duas, dançando e chorando nas chamas, ela girando na horizontal e eu, bem... rodopiando dolorosamente pela eternidade.
Ao amanhecer fui despertada pelo Vati, que afagava meu rosto segurando a minha mão, e com aquele jeito manso disse-me, pausadamente:

–Alma, tu cometeste um erro de avaliação, deste uma criatura viva que te era cara, e que acabou vítima, eu sei. Mas consola-te, não leve em consideração o que tua mãe disse, pois na hora da pesagem, o teu grande coração pesará como um rebanho na balança de Deus. Não te atormentes mais.
 
Meu coração distendeu-se e eu sorri grata ao meu Vati, virei-me de lado e novamente adormeci.

A Hospedeira, ou Ao sul de mim mesma

Crônica de Alma Welt (1972-2007)

 Quando estou aqui na estância, às vezes me bate aquela angústia, e eu peço para o Galdério selar a minha égua baia e saio por estas pradarias em direção ao nada, ao sul... de mim mesma. E ponho minha montaria num galope doido, até a pobre ficar exausta e recusar-se a prosseguir nesse compasso. Aí, já estou muito longe do casarão, e meio perdida. Mas minha égua, Altamira sabe sempre retornar, e eu solto a rédea para ela nos conduzir, voltamos a passo, lentamente e chegamos em casa ao cair da noite. Entretanto, antes de ontem fui parar numa propriedade desconhecida para mim, com árvores frutíferas, macieiras, pereiras e cerejeiras em volta de um chalé modesto, mas encantador, com um ar acolhedor, com a chaminé fumegando, denunciando proximidade do jantar. Apeei, amarrei a rédea da minha égua na balaustrada da varandinha onde havia uma cadeira de balanço austríaca, bati à porta, esta abriu-se e uma senhora idosa, de cabelos brancos, rubicunda, de aspecto bondoso, com uma cara redonda vermelhaça, polonesa ou russa, me acolheu com olhinhos azuis e um sorriso que não se desfez mais. Como é que eu nunca soubera dessa vizinha? Ela me fez sentar à sua mesa e imediatamente, sem nada perguntar ou falar, colocou um prato fundo na minha frente e com uma concha, de um caldeirão, começou a me servir sopa. Eu nada disse, e sempre sorrindo também, comecei a tomar. E era deliciosa a sopa, tomei-a com prazer, acompanhada de um grande pedaço de pão. Ao terminar, agradeci, e ela imediatamente pegou-me pela mão e levou-me a um quarto, que tinha uma acolhedora cama arrumada, com uma linda colcha de retalhos coloridos e um grande travesseiro. Ela fez um gesto de dormir com as duas mãos do lado do rosto, sempre sorrindo. Eu já estava convencida que a boa senhora era muda. Então pedi um telefone, gesticulando como se ela fosse também surda e a senhora me levou de volta à sala, até um aparelho de madeira, antigo, de parede, em que consegui a duras penas ligar para estância, e avisei a Matilde que eu pernoitaria na casa de uma vizinha nossa e que só voltaria de manhã. Matilde quis saber mais detalhes, meio alarmada, mas eu logo desliguei, sem muitas explicações. A senhora então me pegou novamente pela mão, levou-me de volta ao quarto, e de pé diante da cama ela começou a despir-me com desvelo, meticulosa e carinhosamente como se faz com uma guria, uma filha, e estando eu somente de calcinha, ela enfiou-me pela cabeça uma camisola branca bordada, e colocou-me na cama para dormir. Eu permanecia curiosa com tudo aquilo, respeitando e retribuindo a mudez e o sorriso permanente daquela criatura, tanto que fechei logo os olhos enquanto ela apagava a vela, e realmente adormeci. Acordei bem cedinho, com o cantar de um galo, e sentindo-me maravilhosamente bem, repousada e sem vestígio da angústia da tarde anterior. Levantei-me e saí do quarto, de camisola, para ver a minha hospedeira. Não a encontrei. Procurei na casa, em torno dela, no pomar e... nada. Ela não aparecia. Esperei uma hora e... nada. Então chegou a Matilde na charrete, abanando a cabeça e dizendo: —“Guria, tu és doida mesmo. Pensei que se tratava da outra chácara, vizinha, da dona Estela. Lá estive e disseram-me que não sabiam de nada, que não estiveste lá. Que fazes aqui? Não sabes que esta casa está vazia ? A moradora faleceu há quase um ano. Como pudeste entrar e dormir aqui? A casa permanece fechada e deve estar uma sujeira aí dentro. Deixe-me ver. Matilde entrou comigo, viu o prato de sopa vazio ainda na mesa, o caldeirão sobre o fogão de lenha, o quarto com a cama desarrumada, e se pôs mais assombrada. Enquanto eu despia a camisola e vestia minhas roupas, ela dizia, inconformada: —Que estranho, a casa não está suja como eu pensava! Então dormiste aqui, nesta cama,com esta camisola? Quem te acolheu, Alma? Que mistério é esse, guria? Como era a pessoa que te acolheu? Eu descrevi a minha amável e nada loquaz hospedeira, sobretudo sua face “rubicunda”. Matilde empalideceu, fez o sinal da cruz, caiu de joelhos, de mãos postas e começou a tremer. Voltamos na charrete, puxando a Altamira pelo cabresto atrás e tremendo as duas. Meu corpo tremia, sim, mas durante todo o trajeto, meu coração, eu sentia, estranhamente preferia continuar sorrindo.

Réquiem para a Açoriana

(crônica de Alma Welt)


Sendo dia de finados e estando eu aqui na estância, fui visitar o túmulo de minha mãe, que foi enterrada aqui mesmo, no limite do nosso jardim onde começa a pradaria do Pampa infinito. Sempre foi costume dos estancieiros que aqui viveram, muito antes dos meus avós, enterrarem seus mortos, próximos, relativamente do casarão, e desde guria eu gostava de passear por ali, pois misteriosamente o silêncio se tornava maior e se podia ouvir os passarinhos e os insetos, que me pareciam cantar para embalar os que ali dormiam seu misterioso sono. As lápides me pareciam as cabeceiras desses leitos ocultos e eu gostava de imaginá-los deitados, incorruptíveis, como a Bela Adormecida ou a Branca de Neve. Eu chegava mesmo a deitar ali na relva com a cabeça quase encostada na lápide, olhando primeiramente o céu azul e depois fechando os olhos até assustar-me e erguer-me para sair correndo dali. Eu reconheço que isso podia parecer um tanto mórbido, mas creio até hoje que esse meu pequeno ritual infantil não tinha essa conotação, e fazia parte, sim, da minha natureza de sonhadora... romântica, se posso dizer assim.

Mas o que quero contar aqui, hoje, é que sempre notei, ao aproximar-me do túmulo da Mutti, um ramo de flores do campo colocado junto à lápide, em qualquer dia do ano, menos justamente no dia de Finados. Na infância isso não chegava a me intrigar, pois eu pensava que as flores eram colocadas ali pelo Vati, naturalmente. Todavia, quando este morreu, e também ali foi enterrado, eu comecei a notar que as flores não cessaram, e a minha imaginação romanesca foi despertada para um possível enredo oculto, um misterioso apaixonado de minha mãe, Ana, que nunca pude compreender bem... por não ser compreendida por ela. Minha mãe não era o tipo que pudesse ter um amante, bem entendido, mas poderia ter renunciado a um grande amor, pela família, e pelos votos do casamento. Então quem seria esse misterioso admirador ou fiel apaixonado? Comecei a admirá-lo, a esse desconhecido, pois me parecia o protótipo do verdadeiro amoroso, para sempre leal ao seu amor sem fim. Confesso que minha mãe subiu no meu conceito, de alguma forma, com essa possibilidade, pois embora tivéssemos uma grande dificuldade de relacionamento, a possibilidade de minha mãe ser infeliz por renúncia ao seu verdadeiro amor, a tornava por sua vez “romântica”, e justificava a sua infelicidade, que até então me parecera uma injustiça com o deus que era o meu Vati.

Hoje, finalmente, depois de muito tempo que não visitava esse cemitério, e ali procurando os túmulos do meus avós Joachin e Frida , da minha irmã Solange (a pobre assassinada), do pobre bêbado Alberto, seu marido, do Vati, e da Mutti, notei, que as flores sobre o túmulo de minha mãe estavam secas, desfeitas, há muito tempo. Seu fiel cavaleiro havia morrido, não a visitava mais, pensei.

Pela primeira vez chorei não por sua causa, mas por ela mesma.

Por ela, a Açoriana, minha mãe, bela e... infeliz.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

O Walhalla de meu pai

(crônica de Alma Welt )

Meu pai tocava maravilhosamente Beethoven, entre outros grandes mestres. Ele dizia que Beethoven era o maior de todos, também pela sua qualidade pianística, e me fazia ver que o piano do Mestre não era percussivo, não martelava, mas trinava como o canto de um pássaro, e isso seria a sua característica mais marcante. Exigia, dizia ele, grande agilidade dos dedos, para “trinar” assim ou “gorjear”, principalmente nas notas altas.
O Vati me mostrava , tocando inteiras, a maravilha das sonatas Aurora e Apassionata, que ele me fazia ouvir e ver, como música descritiva mesmo, que eram, e como romântico assumido. Na primeira eu via o sol nascendo no meu pampa e a simples contemplação de sua luz na pradaria em tal glória e magnificência, me fazia chorar de alegria de estar viva e de compreender a beleza do mundo, de maneira consciente, graças ao meu pai, o cirurgião pianista que descobrira a validade de dedicar-se ao piano e à sua filha amada, que era eu, sem sentimento de dever perdido, ou de culpa por não mais exercer a também sagrada missão da medicina.
Eu, hoje, olho o piano de meu pai, o Steinway, na biblioteca, silencioso quase sempre, somente dedilhado ocasionalmente por mim, e por Rôdo, mas sem o virtuosismo e esplendor do toque de meu pai, o último grande romântico alemão por estas plagas, e que agora deve estar ao lado de Beethoven., este com sua audição recuperada, discutindo gorjeios de pássaros e pianos.
E também de Goethe, os três em animada palestra, na eternidade de seu *Walhalla artístico, que meu pai projetou sempre em sua bela vida, contemplativa, aprazível, sem culpa...

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Nota da editora

*Walhala – Grande salão, ao ou sala do trono do deus Odin, da antiga mitologia germânica e dos Vikings escandinavos, em que os guerreiros renascidos como tal na eternidade, por prêmio de bravura, reuniam-se para planejar ou comemorar com as Walkírias ( formosas deusas guerreiras) em grandes orgias, as vitórias nas infinitas batalhas da imortalidade gloriosa.

Alma imagina um Walhala dos grandes artistas, verdadeiros heróis da Arte, que ali se reuniriam para palestrar em alegre e eterno convívio. (Lucia Welt)

Alma e o lobo






                                      Alma e o lobo- óleo s/tela de Guilherme de Faria, 150x150cm 

                                                 Alma e o lobo
 (dos Contos Pampianos de Alma Welt) 

 O Pampa sempre foi para mim uma caixa de surpresas. O elemento insólito está presente no meu cotidiano, embora essa impressão não seja compartilhada pelas pessoas que me cercam, a quem a monotonia do cotidiano é especialmente cara. A passagem muito lenta das horas e dos dias, e o vento constante, os embalam numa doce e aconchegante existência pressuposta, ou melhor, previsível, que lhes dá segurança, mesmo ao mais valente peão, macho, laçador, e contador de vantagens. Mas vou lhes contar, meus queridos leitores, a pequena aventura que tive aos dezessete anos, quando passeava sozinha pela minha amada pradaria, um tanto distante do nosso casarão. O dia estava magnífico, era primavera e as florinhas do campo me atraíam para cada vez mais longe à medida que as colhia fazendo um farto buquê, pousado em meu braço esquerdo. Então, subitamente me veio aquela vontade de ficar nua, que vocês já conhecem e que aparece em mim sempre que me vejo só. Ultimamente me ocorreu que isso acontece justamente por causa de vocês, meus leitores. Devo ser uma exibicionista... Uma vez despida, com meu vestido longo abandonado sobre a relva, eu continuei a caminhar com uma nova volúpia, que me era tão conhecida e que para mim sempre rimava com o ato de colher flores, e de coroar-me com elas, pensando talvez na deusa primavera do quadro de Boticelli, embora, no quadro do Ufizzi, ela esteja vestida de maneira diáfana. Foi então que aconteceu. De repente, senti uma presença atrás de mim, e voltando-me topei com a maravilhosa figura de um lobo guará, fulvo, de longas pernas, rosto de raposa, e olhos quase doces, embora atentos. Fiquei imóvel, encantada, e por alguma razão, sem medo algum, estendi lentamente o braço para ele, girando mais lentamente ainda a palma da mão para cima num gesto de convite, que ele acompanhava atentamente, não sei se temeroso, ou simplesmente curioso. Então permaneci muito tempo nessa posição, imobilizada, com a respiração lenta e suave, que depois eu entendi, era o motivo da aproximação, da atração que eu despertara no animal. A ausência de medo em mim o atraíra, também sem medo, senão confiante. Minha beleza muito alva... não, não falarei nela. Seria ir longe demais nas conjeturas. Foi então, que o mais surpreendente se deu. O guará se aproximou lentamente com o pescoço estendido, com passadas quase felinas, e ergueu o focinho para cheirar a minha mão, que eu supunha, recendia à flores. Meu coração acelerou-se ligeiramente, e meu seio palpitou, ofegante de emoção em que me vi, afinal, com aproximação de seu focinho negro e de sua boca, de minha alva e delicada mão. O belo animal, a farejou e, acreditem, deu-lhe uma única e doce lambida! Depois aproximou-se mais ainda, enquanto eu me curvava para ele e... auriu os meus seios! Minha emoção então atingiu o auge, mas numa alegria que me acompanharia por muito tempo. Ele se afastou, a seguir, dando-me as costas, e partindo num trote tranqüilo, enquanto eu o seguia com o olhar, muito tempo, até ele sumir no horizonte. Procurei meu vestido e com uma sensação de plenitude, como... de uma noiva após as bodas, voltei ao casarão, para contar somente ao Rôdo, a minha aventura. Mas, no caminho, com um sorriso, me ocorreu que nem ele, o amado irmão de minha alma, acreditaria nela. Ah! Pampa, pampa de minha vida! O quê, de mais belo, me reservarás?

FIM

30/10/2005 
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E o lobo veio a mim 
(dos Contos Pampianos, de Alma Welt) 

 Matilde foi a primeira a dar o alarme. Tinha um lobo guará rondando o nosso casarão, e havia sumido uma galinha. Logo foram encontradas suas penas e outros vestígios de devoramento. Imediatamente me pus em defesa do lobo. Devia ser o meu guará, eu o conhecia, sim, só podia ser ele. Quem leu a minha crônica (dos Contos Pampianos) “Alma e o lobo”, que coloquei há uns meses aqui no Recanto, sabe do que estou falando. Meu querido lobo, aquele que farejou a minha mão e... o meu seio nu. Ele era meu desde então! Que ninguém tocass nele! Matilde abanou a cabeça, dizendo: –Alma, Alma, agora essa! Atraíste o lobo para cá, não é? Com o teu cheirinho, princesa? Só tu mesma, guria. E agora como vamos fazer para proteger as galinhas? Eu disse: –Matilde, nem que o lobo comesse o galinheiro inteiro! Ele é intocável, não sabes? Ele é um animal magnífico, raro e defendido pelo Ibama. Já ouviste falar disso, cumadre? (eu chamo Matilde de “cumadre’, quando quero censurá-la).
 –“Ibama ou não Ibama, afasta o lobo da tua cama”, diz o povo, sabias? 

(Matilde era rápida e sempre admirei o seu dom de improviso. Desta vez foi admirável, pois era evidente que ela inventou aquilo na hora, e eu caí na gargalhada, abraçando-a ). Matilde sentiu inconscientemente a alegoria daquele lobo rondando a Alma aqui, desde que contei a ela, há meses, o episódio a que me referi. Eu agora devia afastar o lobo ou domesticá-lo. Isso! Seria possível? O guará é tímido demais, e tido, por isso, como animal covarde, arisco, que nunca se aproxima dos humanos. Pobre animal. Ainda assim responsabilizado como predador de ovelhas e galinhas foi quase dizimado e está em vias de extinção. Galdério e uns peões já falavam em caçar o bicho e eu percebi a animação dos “machos” quando se trata de caçar um “predador”. De igual para igual... E eu tinha, pois, que salvá-lo. Eu declarei:

 –Que ninguém ouse matar esse animal. Vai ter que se haver comigo. Ele é meu! Veio me procurar e só comeu uma galinha porque está com fome e ela estava no seu caminho. Vocês vão ver: esta noite eu o esperarei na pradaria, no limite do jardim. Vou fazer serão ali, vou fazer fogo, levarei chaleira, bomba, cuia e mate, e ficarei sob o meu pala, se esfriar. Ninguém se aproxime... vou conversar a sós com o meu guará .

 Matilde só abanou a cabeça, e Galdério tocou a aba do chapéu, como quem acata uma ordem. Tudo certo. Naquela noite eu fiz o meu “fogo de bivaque” e tomei meu chimarrão, esperando meu lobo. E, como eu acreditava, ele veio. Aproximou-se lentamente, os olhos brilhando tão intensamente no escuro, que a princípio tive medo, pensando tratar-se de um outro, feroz, lobo-mau mesmo. Mas a curta distância, quando eu estava prestes a vergonhosamente correr (ó mulher de pouca fé) eu o reconheci. Em lágrimas de alegria estendi os dois braços para ele, que ficou muito tempo parado, me pareceu, depois se achegou lentamente e deixou-me tocá-lo. Eu acariciei sua cabeça, seu pescoço, seu lombo. Ele deixou, imóvel. Então eu o abracei, sua cabeça junto ao meu seio. Ele fechou os olhos profundamente e eu... tive uma imensa alegria, mista de ternura, um êxtase tal que se confundiu com um orgasmo... da alma. Depois eu beijei o seu focinho, ele lambeu meu rosto como um cão fiel e amoroso. Eu tinha ganho a minha noite, o meu dia, o meu mês. Que digo? Meu lobo me consagrara no seu Pampa, príncipe das pradarias que ele é, apesar da injusta fama de covarde e ladrão de galinhas. Ele era o meu príncipe. Ai de quem ousasse fazer-lhe mal! Não foi preciso dizer isso quando voltei para dentro da casa, com todos me esperando. Meu olhar, meu corpo, meu aspecto diziam tudo. Nunca mais tocariam no assunto de caçar um lobo.
 E as espingardas não saíram das paredes...

FIM

 27/02/2007