(crônica de Alma Welt)
Devo partir com ela? Há um mês que penso nisso, seriamente tentada. Sim, isto está bem claro. Como não pensar nisto? Olho a minha vida, este apartamento escuro, de algumas quatro paredes, no miolo da loucura. Este centro de cidade imensa.
Joana me seduziu com seu estranho mundo, seu rosto de maçãs salientes, seus olhos oblíquos, seu pescoço grosso. Baixinha, rechonchuda, mas com a cintura fortemente marcada. Uma figurinha de louça que usasse um invisível espartilho. E sua cabeleira? Piramidal, de ondas miúdas que descem armadas em lances retos para os ombros roliços.
– Era assim— ela dizia— a gente enchia a boca de querosene e
soprava a tocha perto do rosto, num fogarão danado. Era fácil.
– Mas Joana, você não se queimava nunca?
– Que nada, a gente punha marmelada na língua ... Um pedaço assim.
– Ah! Bem, está explicado, a marmelada, veja só...
Olhava sua pele rosada e sua boquinha minúscula. E a cabeleira, meu Deus! Não havia dúvida: ela era de circo!
– O mais arriscado era quebrar pedra no peito, foi assim que eu comecei. ”Giante”, ele era forte assim, pegava um enorme malho e descia a marreta sobre a pedra no meu peito. Uma pedra enorme. Partia em duas.
--Mas Joana, não doía? E o choque?
– Que nada! A gente apoiava a pedra nas palmas das mãos por baixo.
– Aahh!
– “Mas o meu número mesmo era um em que ninguém podia me substituir – INDIANA LOPEZ, A MULHER DOS CABELOS DE FERRO. Era eu. Eu arrepanhava o cabelo que era amarrado a um gancho na ponta de uma corda. E lá ia eu, lá pro alto. Punha uma perna assim, a outra assim que nem bailado. Eu lá em cima, todo mundo lá embaixo, olhando pra mim e eu então girava, girava. Como um pião. Como? É... Doía o couro cabeludo, mas ah! a gente acostuma.
Eu fazia também os números de teatro. “ARLETE OU O CASO DA NOIVA ASSASSINADA”. Que vestido eu usava! “A VINGANÇA DA ÓRFÃ CEGA”. Eu punha os olhos parados assim, todo mundo achava eu cega mesmo, tal e qual. E a “CONDESSA DE CALIOSTRO? Eu usava uma gola prateada e uma capa de cetim, vermelha e preta. Ah! Quando a gente é artista não acostuma mais noutra coisa. Eu sou assim desde pequena. Subia em árvore, minha mãe não gostava, dizia que eu parecia moleque. Andava em cima dos muros, nunca perdia o equilíbrio. E podia até olhar pra baixo.
Mas vida de circo é dura. Chegou um tempo em que não dava mais nada, o circo fechou, a lona penhorada, as roupas, tudo, até um urso que tinha... Tive que procurar emprego, só encontrei de doméstica (eu cozinhava no circo, às vezes, o pessoal gostava). Mas eu vou voltar, a senhora me desculpe. Quando a gente nasceu pra Arte... Já arrumei uma vaga num circo aí. Quem me recomendou foi o Tonzico, do “Tonzico e Tinhoso,” aquela dupla famosa. Ele me deu uma carta, olha aí. Vamos seguir por todo o Brasil, e desta vez não largo nunca mais. É a sina de Artista. A senhora? Poderia arrumar um lugar, por quê não vem ? A senhora tem um corpinho bom pra trapésio! A senhora aprende qualquer coisa. Ajudante do mágico... amazona do cavalo branco... Com esse seu lindo pescoço, que bailarina!...
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Olho em torno de mim a minha vida. É engraçado, eu não fracassei. Mas a que preço! Tenho até futuro, vejam só. Devo pegar um atalho, sem retorno? Estaria, nesse caso, me desviando do meu Destino. Mas, destino, a gente o tem, antes? Esta vida adiada, permanentemente em futuro, será a vida? E no entanto, não perdi ainda... Há quem me tome por uma vencedora, em certa medida. Estarei somente sugestionada por um dos mundos da alma, que se apresentou vivo em minha frente, numa verdadeira encarnação?
Ela arruma a sua mala. Interrogo-me a mim mesma . Que espécie de sedução me tomou?
Vou até a porta, com ela. Minha vida oscila numa estranha fronteira. Bastaria um passo, um basta. Joana me olha, tranqüila, firme em si mesma, inteira, estendendo-me sua pequena mão gorducha. Sua independência me coloca minúscula, ao pé da porta. Devo ter o olhar das crianças que hesitam em entrar por debaixo da lona. Ou o olhar dos adultos, na platéia.
— Ah! Que pena... A senhora tem um corpinho bom pra trapésio...
FIM
sábado, 15 de março de 2008
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