segunda-feira, 31 de outubro de 2011

A Morte do Coveiro Viajante ( crônica de Alma Welt)

Depois da morte do velho coveiro da nossa cidade, que, pobre coitado, morreu na ativa, nunca podendo se aposentar, não houve meios da prefeitura conseguir um substituto, por mais que, abrindo duas vagas, convocasse um titular e um ajudante. Os jovens de nossa cidadezinha não queriam pegar no cabo de uma enxada, interessados que estavam na Internet, nos bailes-funk, e em namorar pelo celular. Alguns poucos defuntos recentes chegaram a ser improvisadamente enterrados nos quintais de suas casas pelos seus familiares. A situação estava ficando insalubre e quando morreu a sogra do nosso prefeito, e esta na espera começou exalar odores suspeitos, este enviou um torpedo para a cidade vizinha não muito maior que a nossa, convocando em caráter de urgência e por empréstimo ao colega daquela outra prefeitura, por “estado de calamidade pública”, o também vetusto e digno coveiro daquele povoado.

Gostaria de poder contar nesta estória anacrônica, que o velho coveiro veio no tremzinho Maria-Fumaça, chegando de madrugada com suas ferramentas embrulhadas em jornais velhos. Mas não havia mais trem e muito menos desse tipo há muito tempo, e nem a linda e singela estaçãozinha, com o nome da nossa cidade escrito. O nosso mestre dos caixões, pás e enxadas, chegou de manhã vindo numa viatura da prefeitura, caindo aos pedaços, que o foi buscar.
Entretanto, acreditem ou não vocês, assim que o velho tinha acabado de abrir a cova para a sogra do prefeito e iam começar os elogios fúnebres e os discursos eleitoreiros, o velho começou a passar mal, a cambalear como se bêbado e caiu fulminado dentro da cova, antes de ter tempo de ao menos baixar o caixão de sua ilustre última cliente. O prefeito não teve dúvidas: exasperado, pediu a ajuda de alguns correligionários e arrastando a braços empurraram o caixão do avantajado defunto para dentro da cova por cima do cadáver fresquíssimo do velho serviçal. Enquanto esses esforçados políticos tomavam afinal a iniciativa de pegar a pá e jogar terra sobre aqueles náufragos, ouviu-se ainda um resto de discurso do prefeito com alusões a um capitão que afunda com o seu navio, e que recebeu movimentos de cabeça aprovativos e até palmas. Estava encerrada a questão. O que não tem remédio, remediado está... cada um que dali por diante se ocupasse dos seus mortos e não aborrecesse mais a prefeitura, que afinal, disse ele, tinha os vivos com que se preocupar. E ainda citou Jesus Cristo num dos Evangelhos: “Deixem os mortos enterrarem seus mortos!”
O que ninguém entendeu, muito menos eu...

terça-feira, 11 de outubro de 2011

O Bife (de Alma Welt)

‎"Uma vez, quando eu era guria, brincando perto da casa comecei a ouvir uma música maravilhosa, vinda do piano de cauda de meu pai, na biblioteca. Voltei correndo para dentro de casa, para vê-lo tocando. Joguei-me debaixo do piano onde ele colocara um tapetinho para mim, mas tendo cumprido esse ritual da minha primeira infância, logo coloquei-me a lado dele para ver as suas mãos fortes e ágeis em ação. Tratava-se do Cravo Bem Temperado, de Johann Sebastian Bach. Quando ele terminou eu beijei muito a suas mãos. Ele colocou-me nos joelhos e disse: "Agora... ao Bife Bem Martelado!" (Alma Welt)

Reverenciando os deuses (de Alma Welt)

‎"O jovem padre entrou e foi recebido respeitosamente por meu pai. Eu, guria de dezesseis anos os observava pela fresta da porta, admirada e um tanto excitada, tanto mais que conhecia o agnosticismo do velho, que fizera a experiência de me criar desde pequena como uma pagã para não ser contaminada pela idéia de "pecado", que ele abominava nas religiões em geral. O padre vinha insistir, embora cuidadosamente, que eu fosse finalmente batizada, a pedido de minha mãe, a Açoriana, gravemente doente. Então ouvi meu pai responder: "Padre, isso é uma questão de "foro íntimo". Somente a menina poderá decidir se consente ou não nesse ritual. Mas sinceramente duvido que ela consinta, pois já tem seus próprios e belos rituais naturistas, que ela leva muito a sério".
O padre disfarçou a custo a sua indignação, e apenas pediu que me chamasse à sala. Eu apareci imediatamente, e logo dizendo: "Seu Padre, que bom que o senhor está aqui... gostaria de levá-lo agora mesmo ao nosso pomar onde queimarei as ervas votivas aos deuses, que hoje a lua está propícia e a aragem suave. O senhor vem, padre? Devemos reverenciar os nossos deuses, não é verdade?" (Alma Welt)

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

De onde sopra o vento (de Alma Welt)

O peão aproximou-se da varanda sempre olhando para cima e cofiando os grandes bigodes caídos, sinal de pouca reverência... Olhou-me bem nos olhos e disse: "Patroinha, não sei falar de trabalho com uma mulher, mormente quando bonita como um prenda . Não podes chamar um gaucho macho de sua confiança para ouvir umas boas verdades sobre a lida que tenho a fazer e de que não estou encontrando condições?"
Pensei por um momento em chamar o Galdério, mas logo pensei: "Se o fizer nunca mais serei respeitada por este "gaucho" soberbo..." Respondi: "Fale comigo mesmo, ó homem, que esta estância está toda em minhas mãos, goste o senhor ou não."

O gaúcho olhou-me bem, mas de outro jeito; tirou o chapéu de barbicacho e fez uma ligeira reverência. "Esqueci o que me incomodava, patroa. Acho que era só o não saber de onde soprava o vento..." (Alma Welt)