terça-feira, 18 de março de 2008

O piano negro... o carro vermelho

(crônica de Alma Welt)

Eu me aproximava, naquela manhã, do casarão, voltando das minhas incursões ao bosque e à campina. Eu trazia amoras silvestres e pequenas flores, algumas sempre-vivas para pòr no meu quarto. Foi então que ouvi o piano do Vati. Mas... ele havia morrido há três meses! Corri para a casa, atravessei a soleira e fui direto para a biblioteca. Lá estava o piano deserto. O Steinway de meu pai. Mudo, negro, solitário. Soltei um longo gemido. E chorei, chorei.
Como viver sem o meu Vati? Como conviver com as suas lembranças, sem doer, sem doer tanto a sua barba, o seu cabelo branco, as suas mãos fortes e sensíveis? Meu pai era o poderoso Zeus, talvez Odin, talvez os dois ao mesmo tempo.
Lembro-me de que Rodo se comportou com grande contenção e dignidade o tempo todo na doença e na morte de nosso pai, enquanto eu estava próxima do delírio trágico e do escândalo. Eu rasgara as minhas roupas e arranhara os meus seios nus em público, enfiara as unhas na terra e a jogara sobre a minha cabeça. Eu uivara como uma loba. Rodo precisou me dar um tapa no rosto. E eu vi o que é ser homem, como é forte, difícil, como é poderoso ser homem! O que sei eu deles? Nada, o universo masculino... Eu o sei como aos livros, como eterna espectadora do teatro da vida. Expressão literária, bah!
Mas eu não sabia e não sei viver sem a força de meu pai, sem seu piano interpretando a minha vida, meus sentimentos mais profundos de cada período, manhã, tarde, noite. Como viver sem essa trilha sonora perfeita? Eu me sinto agora num filme mudo, extemporâneo. E sou a grande canastrona, de gestos estudados talvez, e de boquinha pintada em forma de coração sobre a minha grande boca chorona. Estou imitando a vida e preciso agora da Internet como quem precisa de uma câmara de manivela. Eu aceno a vocês, ó do Recanto, aqui, atrás da lente, como de um aquário, onde escasseia o oxigênio de uma água viciada.
Toca o telefone, eu corro. Apesar de tudo eu corro, filha incorrigível da esperança. É Rodo chegando! Ele veio! Ele está próximo, vem voando no seu carro vermelho. Meu irmão me salvará de mim mesma!
Por hoje não enlouquecerei...

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