quarta-feira, 19 de março de 2008

A absolvição da Alma

(crônica de Alma Welt)


Há uma pequena aldeia entre a minha estância e Rosário do Sul, que não citarei o nome, e de que me tornei, inadvertidamente “persona non grata”. Eu contei na minha crônica ou conto “O padre” (que coloquei há tempos aqui no Recanto) o suicídio de um pobre jovem padre, meu confessor. Acontece que o padre que o sucedeu, não menos fanático, não tardou a me responsabilizar e fez de tudo em seus sermões para insuflar a população contra mim, de forma disfarçada e alegórica, quando não direta mesmo. Uma vez, ainda naquela época, não me deixou entrar na igreja, praticamente me expulsando, com o dedo apontado para mim, como um anátema, chamando–me de "Jezebel". E eu era somente uma adolescente!
Bem, os anos passaram e eu raramente piso lá desde então.
Recentemente, fui com Matilde visitar parentes seus, resolvi entrar na igreja e fazer uma oração. Então vi um padre desconhecido que entrou, para preparar o cálice e os paramentos para a missa das seis, talvez por falta de um sacristão. Olhou-me com curiosidade, e eu, tendo gostado da sua fisionomia, me aproximei e disse:
–Padre, eu moro numa estância, longe daqui, e preciso me confessar. Poderia fazê-lo agora? Com o senhor?
O bom padre disse com ar compassivo:
–Sim, minha filha, pode, venha ao confessionário. Mas o que pode uma moça como tu, com esse olhar límpido, ter cometido que ofenda o Senhor?
Gostei de ouvir aquilo. Eu estava em boas mãos, e achei que não seria condenada depois de tanto tempo... Ajoelhada, ele lá dentro, comecei:
—Padre, cometi um pecado grave, há anos atrás. E não me penitenciei, na verdade só sofri. Foi com o padre Ramiro, quando eu tinha dezessete anos, Quero dizer... eu confessei coisas sem arrependimento verdadeiro, a respeito de minhas relações com meu irmão, como bravata, para provocar o pobre padre, que era fervoroso mas intolerante, ao meu ver. Que sabia eu da vida? Era uma guria tola, isso sim, embora não fosse má, queria afrontar o mundo e não sabia como.
–Eu entendo, entendo, minha filha. Mas conte-me somente os fatos, deixe que eu tire minhas próprias conclusões. Deus está vendo o teu coração. Prossiga.
–Bem, padre, eu atormentei o bom padre, que era jovem, com uma confissão impenitente, e ele me expulsou do confessionário e da igreja. Depois de uns dias, foi encontrado enforcado, pendurado na corda do sino da igreja, e deixara um bilhete, estranho, cujo conteúdo me foi revelado pelo coroinha, que era meu amigo. O bilhete de suicida fazia uma dúbia menção à “alma” que “envenenara o seu coração com um amor pecaminoso”. Não tardou o conteúdo do bilhete a vazar para a cidade, e eu fui expulsa da igreja durante uma missa pelo padre que substituiu o infeliz. Depois a própria cidade me rejeitou e eu passei anos sem vir aqui. Agora o episódio parece esquecido, embora eu note alguns olhares, e como aparecem mulheres mais velhas nas janelas quando eu entro na aldeia. Mas não é isso que me incomoda, padre. É que ficou um pequeno peso, cá dentro do meu coração, que me impede de ser feliz, como eu desejo.
–É lógico, minha filha, nem poderia, tu não foste absolvida e nem te perdoaste a ti própria, embora tenhas aparentemente te arrependido. Demoraste demais e sofreste por isso. Vou tomar como penitência esse sofrimento que chamas de “pequeno peso” em teu coração. Vou absolver-te, mas terás que rezar trinta e três Ave Maria e trinta e três Pai Nosso, em memória do padre Ramiro, e encomendar uma missa por sua alma. Agora vai, minha filha, com minha absolvição em nome de Deus e minha benção. Mas não peques mais.
E eu, que nunca fora batizada, e até aquele dia me considerara uma pagã dos antigos tempos, levantei, mais leve, e fui acender uma vela à Santa Maria, e rezar a penitência. Então, comecei a chorar, chorar, de alívio e gratidão. Não se pode brincar com as mentes e os corações alheios. É muito grave. Mas eu tinha sido perdoada por outro ser humano, e certamente também por Deus. Poderia agora me perdoar também.

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Nota:
Se o leitor quiser conhecer melhor o episódio da adolescência da Alma que gerou os fatos narrados nesta crônica, sugerimos que leia o conto entitulado "O padre".

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