quarta-feira, 19 de março de 2008

O padre

(dos Contos Secretos, de Alma Welt )

Também tive meu período de religiosidade cristã, católica, na adolescência. Como o Vati me criara praticamente como uma pequena pagã, por influência dos deuses e mitos que me dava a conhecer desde pequena (embora eu tivesse sido batizada por absoluta exigência de minha mãe), eu tinha, na verdade, a opção, e portanto me sentia livre para escolher. E essa escolha era sazonal, essa é que era a verdade.
Sendo assim, eu exercitava o lado místico da minha alma, com um ardor ingênuo, afinal, imaginando-me freira, no futuro, noiva de Cristo, o que, na verdade, eu pensava em termos quase eróticos.
Pus-me a confessar-me, quase todos os dias, para comungar, com volúpia, imaginando-me engolir um deus, o que meu pai me explicaria como sentido etimológico da palavra “entusiasmo”.
Eu inventava “pecadilhos”. Pois a minha imaginação não concebia grandes faltas, pecados, muito menos “crimes”. Mas, em compensação, eu era bastante convincente, com minha imaginação literária, de poeta.. E, como sabem, a poesia é o que há de mais verossímil, quando verdadeira, vinda do “imo”. Assim, eu inventava ou vivia em imaginação e coração, pequenos enredos interessantes, curiosos, e até misteriosos, para o pequeno padre, jovem, da nossa paróquia, a quem me confessava, deixando-o perplexo, confuso, eu percebia.
Uma manhã, estando aparentemente compungida e fervorosa, ajoelhei-me diante daquele confessionário, fechado, escuro, cuja treliça muito fechada não permitia ver o rosto do meu confessor, o que de certa forma tornava o ato mais interessante, mais instigante para mim, com aquele silêncio sem rosto que se manifestava mais eloqüentemente que as falas do jovem padre.
–Padre, eu pequei. Amo meu irmão, e dei-me a ele desde os sete anos. Agora não posso mais amar outro homem, e anseio por ele, que voltou a tomar-me todas as noites, em meu quarto, em meu leito. Ele é adolescente, como eu. Dei-lhe minha virgindade há muito tempo, mas temo engravidar, pois... ele me possui como um homem, agora, muitas vezes. Padre, tenho mêdo.
–Minha filha–(disse o padre com os cabelos em pé, eu imaginei, atrás da treliça)–o que é isso? Como podes falar assim? Então só temes isso? A gravidez? É isso que temes? E a Deus, não temes? Ambos estão em pecado mortal, gravíssimo. O pecado do incesto, outrora punido pela lei secular, com a morte. Não vês, criatura, que se não parares e te arrependeres, queimarás no inferno? Eu te dou como penitência, duas mil Ave Marias e mil e quinhentos Pai Nosso. E ainda assim , não sei se mereces perdão...
Comecei a chorar, voluptuosamente, imaginando-me arrastada em praça pública, sob ameaça de apedrejamento, a lapidação dos hebreus antigos... e um calor tomou-me o corpo todo.
–Padre, farei o que me mandares. Mas meu corpo tem um estranho calor, ali, embaixo, e não consigo dominá-lo. A felicidade que me toma o coração quando estou nos braços do meu irmão, me deixa mole, e eu não consigo reagir, rechaçá-lo. Hoje à noite, mesmo, ele me procurará, e sei que não resistirei quando ele puser suas mãos em mim. A felicidade, padre, a felicidade, então, é sinal do pecado?
—Alma, cala-te, tentadora. Cala-te e reza. Não vês que é o demônio que te sopra essa felicidade? Ela é falsa, ela é filha da luxúria. Essa felicidade como chamas, é a máscara do Demônio, seu supremo ardil. Cala-te e reza, pecadora!
–Padre (eu solucei), eu tentarei, eu tentarei, mas não podes me absolver, por hoje, e dar-me a comunhão?
–Não, não, mil vezes não. Estás em pecado, e não me convenceste de teu arrependimento. Pensas enganar teu confessor? Pensas enganar a Igreja? Pensas enganar a Deus? Sua pequena Messalina. Terás de sofrer, isso sim, para te arrependeres. Não vejo remorso em ti. Estás bela demais, esfuziante. Eu te vejo daqui, através destes furos. Tua pele alva brilha, teus olhos verdes brilham, não vejo sofrimento em ti. Estás iluminada pelo fogo de Satã, e não confio na tua confissão. Pensas que a Igreja é tola,. que podes manipulá-la. Fóra, pequena Jezebel!
Saí dali, fazendo o sinal da cruz, envergonhada e confusa. Eu fora longe demais, eu superestimara minhas forças, meu poder de sedução, e brincara com coisas sérias, agora eu via. Eu, uma simples adolescente, conseguira escandalizar um padre. Poderia confiar no seu voto de sigilo? Tive um ligeiro estremecimento de medo.
Passei uma semana sem voltar àquele confessionário. Mas também não rezei aquela penitência milionária. Eu me desconhecia, um sentimento estranho, de rebeldia, tinha sido cutucado em mim, e levantava-se como uma tendência ao desafio. Eu considerava-me imune ao pecado, acreditava na inocência primordial do ser humano, na minha própria inocência. Eu nunca poderia ser cristã, na verdade. Não acreditava no pecado, e tinha, sempre tive, um secreto orgulho do meu amor por Rôdo, que considero sublime. Eu não voltaria a ajoelhar-me.
Mas eis que veio a notícia, que abalou toda a paróquia da vila: o jovem padre suicidou-se, uma noite. Foi encontrado pendurado na corda do sino com o badalo amarrado, estrangulado, quero dizer... Foi encontrado um bilhete a seus pés, que o pequeno sacristão escondeu, e me mostrou:
“ Sou pecador, danado para a eternidade. Meu coração me traiu, meu coração me traiu, meu corpo e alma me traíram. A alma, a alma envenenou meu coração, com um amor pecaminoso. Deus se compadeça de mim, que estou no Inferno!”
Dei um grito e cobri meu rosto. Eu era culpada, afinal.

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29/09/2004

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