sábado, 28 de janeiro de 2012

A Penélope do Pano Verde (mini-crônica de Alma Welt)

Uma das mais marcantes recordações da minha infância foi o retorno de meu irmão Rodo, que fora colocado num Internato por vários anos para separar-nos depois do nosso flagrante pela Açoriana, nossa mãe, nós dois nuzinhos sob a macieira do pomar. Quando fomos esperá-lo na estação, o trem chegando a resfolegar e a silvar, eu dava pulinhos e batia palmas de excitação. Quando a máquina parou em meio a todo aquele vapor e as portas dos vagões se abriram, avistei meu irmão, guri magnífico, que me pareceu mais belo que nunca. Corri em sua direção e nos abraçamos tão forte que a Mutti e Matilde tiveram que nos apartar, puxando-nos cada um para um lado. Eu estava decidida a nunca mais deixá-lo partir, mesmo sem saber como...
Entretanto, eu não sabia que a semente da separação já estava plantada, e não fora a simples distância: Rodo aprendera o jogo de pôquer na escola, com meninos mais velhos. No caminho de volta, na charrete com Galdério, ele tirou do bolso um maço de cartas de baralho e nos mostrou com elas sua nova habilidade de ilusionista. Eu, encantada, não sabia o que me esperava bem lá para frente, a pequena Penélope do pano verde que eu me tornaria um dia, e novamente por tantos anos... (Alma Welt)

Escolhas (crônica-relâmpago de Alma Welt)

Matilde, minha ex-babá, nossa atual cozinheira, mulher simples, repleta de senso comum e muito afetiva, me dá conselhos que eu nunca pensei em seguir, desde que eu era guria. Escrevi muitos sonetos-crônicas que descrevem a nossa relação. Ela me queria ver casada e... feliz. Cheia de filhos, claro. Jamais pôde entender as minhas escolhas. Mas... escolhas? Creio que tudo foi Destino. Um poeta não escolhe a poesia, a Poesia o escolhe... (Alma Welt)

Pôr- do-sol em Veneza ( mini-crônica de Alma Welt)

Uma vez, em Veneza, admirando o sol se pôr sobre a Laguna, eu senti a nostalgia dos séculos, de todos os séculos, com ênfase naquele de Ticiano e Tintoretto... Logo me lembrei que me sinto assim também na minha varanda, mirando os poentes do meu Pampa sobre o horizonte da coxilha infinita, que me fazem passar por aqueles sangrentos e gloriosos, dos Farrapos. Então me ocorreu que o Sol é a prova de um Eterno Retorno, que todo poente é um Passado e que talvez o Futuro seja uma ilusão. Essa idéia me pareceu consoladora, tanto mais com a Aurora como o nosso brilhante futuro desconhecido... (Alma Welt)

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

De Desfiles e Besteiras (crônica de Alma Welt)

Uma vez, quando guria de uns oito anos, pouco antes de mudarmos para a estância, no nosso sobradão em Novo Hamburgo, fui encerrada por castigo no sótão, por minha mãe. Para não me entediar tratei de explorar o conteúdo das arcas e baús que havia ali. Foi quando reconheci, entre as fotos antigas de meus pais e avós, ele o velho Joachim Welt, meu avô, quando moço, numa foto datada de 1939 desfilando pelas ruas de Blumenau (a legenda a lápis indicava) todos com uma braçadeira com uma cruz estranha e com o braço erguido com a palma da mão estendida para baixo. Quando, de noite, libertada daquele sótão com a chegada de meu pai, à mesa do jantar perguntei a ele, com a foto na mão, o quê era aquilo, quê desfile era aquele. A Mutti olhou-me com um olhar fulminante e cobriu o rosto com as mãos balançando a cabeça, em desalento. Meu pai ficou sério, olhando a foto, mas disse: "Alma, isto foi uma besteira do teu avô, quando moço. Os adultos também fazem besteiras, sabia? Depois do jantar falaremos disso. Vou te mostrar bastante coisas nuns livros... está bem, querida? (Alma Welt)

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

O Baluarte (mini-crônica de Alma Welt)

Uma manhã, estava eu andando na coxilha a contar sílabas nos dedos, quando o tempo subitamente fechou, clarões me ofuscaram e a chuva começou a cair. Me senti vulnerável e temi ser fulminada por um raio. Então vi o Galdério a cavalo, galopando em minha direção, e pensei: "Eis o meu anjo guardião"... Ele chegou e sem apear estendeu-me a mão que peguei, e num impulso, pela força de seu braço lá estava eu em sua garupa. Abracei-o assim por trás, meu rosto e meu corpo colados à suas costas que me pareceram a muralha de uma fortaleza. E pensei, juro que pensei: "Que grande força é o homem! Está tudo certo, este peão é o meu baluarte e eu sou sua princesa... espero ser digna de sua voluntária servidão." Pouco depois estávamos diante do casarão e ele apeando pegou-me pela cintura e me desmontou como se seu fosse muito leve... Matilde vinha pela varanda com uma toalha para me acolher, me envolver, me enxugar. Eu jamais me esqueceria desses momentos, daquela aconchegante sensação de pertencer, que estaria para sempre na raiz da minha poesia... (Alma Welt)

O Laço (mini-crônica de Alma Welt)

Uma vez, num tempo negro de minha vida, subi ao sótão do casarão com um laço de couro cru de vaqueiro e pensei em mim pendurada na viga do telhado. Mas como tenho uma imaginação realista, me vi grotesca, de língua de fora, o pescoço torto e os olhos esbugalhados. Minha vaidade foi maior, joguei o laço num canto. Ao descer a escadinha em caracol, escapou-me um longo suspiro e.... logo uma gargalhada. Eu estava salva! (entrevista com Alma Welt)

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

A FALA DO TRONO (crônica de Alma Welt)

"Poucos anos passados da morte do Vati, eu me vi praticamente encarregada de dirigir esta estância, logo eu, a poeta, "a artista da família". Então, aconteceria por aqui uma tragédia, uma morte ocasionada por uma peleia de faca entre dois peões. A origem da desavença parecia obscura e as famílias dos dois gaúchos se tornavam inimigas e estavam se armando, novas tragédias se anunciavam, tudo levava a crer no início de uma  "vendetta"  daquelas que se perpetuam com um ódio mútuo que atravessaria gerações. Então mandei o Galdério esvaziar nosso salão retirando até mesmo a grande mesa, e convocando através do meu fiel capataz os dois gaúchos mais velhos, os patriarcas de suas famílas, me mantive sentada numa cadeira de espaldar alto para deliberadamente produzir neles a sensação de uma rainha em seu trono. Eles se aproximaram lado a lado, sem se olharem e a um gesto meu estacaram a uma distância de quatro ou cinco metros. Fiz um calculado silêncio de alguns minutos e então lhes disse solenemente:

-"Houve aqui uma tragédia. Não haverá outras. Dois jovens se perderam. Um está morto e lhe faremos as honras. O outro está preso e lhe daremos assistência. Já basta. Não haverá mais mortes e ofereceremos esta dífícil paz e conciliação ao sábio Maestro que vosmecês veneravam tanto quanto eu, sua filha. Estejam certos que ele está nos olhando. Por ele eu peço: dêem-se as mãos e esqueçam as idéias de vingança. A paciência e sabedoria de vosmecês, pais, secarão as feridas com o tempo. Não nos decepcionem..."

Fiz um gesto de rainha, que encerra a audiência. Eles se viraram um para o outro e estenderam-se hesitantemente as mãos. Era o que cabia fazer, eles sentiram.
Eu, com minha postura, não de simples patroa, mas rainha, não dera margem para outro desfecho. Eles se retiraram. Eu permaneci longamente no trono, solitária. Eu vivera o momento mais alto da minha vida. E senti que ele não excluia a Poesia..." (Alma Welt)

domingo, 15 de janeiro de 2012

As Palavras da Matilde (crônica de Alma Welt)

Supondo que o clima decadente desta estância povoada de memórias muito mais antigas que os meus avós, que nela plantaram o vinhedo, está me contaminando com sua melancolia e dissipação, cheguei a lamentá-lo diante da Matilde, minha eterna ex-babá, que me restou como única confidente, embora seja tão... digamos, "pé-na-terra". Mas sua reação me fez pensar, como outrora, fonte de equilíbrio que tantas vezes foi para o meu coração. "Que esperavas, Alma? Isso que tu chamas de "decadência da estância", existe sim, posso vê-la, mas emana de ti mesma, dessa tua solidão, desse teu orgulho que não te deixou ser mulher de um homem, ser uma esposa e mãe! Que te faz permanecer nesse sonho de escrever versos, como se isso desse camisa a alguém! Isso está te matando, guria, não vês?"
Eu a ouço e, de repente deixo escapar um soluço imenso, corro para o quarto e... escrevo isto! Sim, isto que escrevo agora! Estou irremediavelmente perdida! (Alma Welt)

Sobre Lea Leandro ( crônica de Alma Welt)

Quando eu vivi na cidade de São Paulo, entre 1995 e 2004, num momento de solidão e carência, conheci e me apaixonei por um jovem e lindo travesti e depois transsexual, com quem vivi um ano e meio. Foi uma das experiências mais dolorosas da minha vida. Entretanto me lembro dele/a com carinho, porque realmente o amei. Ela se chamava Lea Leandro, e só lamento ela (ou ele) não ter assumido a sua bissexualidade, como eu a minha, e ter querido tanto ser mulher, a ponto de mutilar-se. Eu me pergunto, como um ser que teve o privilégio de ser um hermafrodita ou quase, a meu ver o ser humano perfeito de Deus, pôde optar, assim, por um só lado, uma só natureza. Eu não o faria... (Alma Welt)

Crise de Inspiração ( de Alma Welt)

Ouve-se falar de "crise de inspiração" de escritores. Dei-me conta de que nunca experimentei isso. Creio que isso não me ocorre porque vivo permanentemente "inspirada", desde que me coloquei, ainda guria, sob a sagrada égide da Arte, isto é, votei-me aos deuses e às musas. Mal posso compreender que nem todas as pessoas vivam assim, em contato com o "Sagrado", que é o elemento essêncial da Vida e do Mundo... (Alma Welt)

Efêmeras Bençãos (de Alma Welt)

Diante da imensa dor do mundo, frequentemente me surpreendo envergonhada de cultuar a beleza, a felicidade e a alegria. Mas que posso fazer? Essa é a minha natureza, que emana das bençãos que recebi do Destino, ou... de Deus. Também devo um tributo a elas, mesmo que derive do medo de perdê-las, pois bem sei quão transitórias e efêmeras são essas bençãos... (Alma Welt)

Dos que são olhados pela fresta ( crônica de Alma Welt)

Sendo um ser de família e tendo escrito mais de dois mil sonetos, às vezes me dou conta da minha grande solidão e mesmo marginalidade como poeta. Não pertenci a nenhum grupo ou movimento; não fui reconhecida pela cultura oficial, ou pela mídia; permaneço no limbo dos artistas insólitos, que simplesmente não se encaixam. Sou talvez daqueles que são olhados pela fresta e que não se contam para os amigos. Mas por isso mesmo tenho consciência de estar falando por muitos... pela solidão das pessoas, pela grande beleza oculta das pessoas comuns... (Alma Welt)

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

A Borboleta e a Caveira (crônica de Alma Welt)

Quando eu era guria pequena, meu pai me levou a um velório de um velho peão aqui da estância, e ao ver aquele corpo parado em cima da mesa, todo ataviado, de bombachas e esporas, eu perguntei ao meu pai: "Vati, ele não vai se mexer mais?". Então, Lucia, minha irmã, se adiantou e disse: Não, Alma, ele vai virar uma borboleta..." Nesse momento, Rodo, meu irmãozinho muito esperto, interferiu dizendo:- "Não, suas bobas. Ele vai virar uma caveira."- e arreganhou os dentinhos num sorrizinho grotesco. Calei-me então, e permaneci pensativa entre estas duas imagens, a encantada e a perturbadora... Assim estou até hoje. Quanto ao meu Vati, às vezes me pergunto por quê ele se calou, e o quê teria respondido. Ele, que parecia saber tudo... (Alma Welt)

domingo, 8 de janeiro de 2012

A Morte da Açoriana (uma recordação de Alma Welt)

Lembro-me do dia, era uma manhã, e eu, guria, com o coração perturbado pela doença da Mutti, tinha saído para andar na coxilha e subitamente senti que devia voltar. Ao reentrar encontrei soluços por todo o casarão. Matilde veio a meu encontro no salão e estendendo-me as mãos disse: "Onde estivesse, guria má ! Tua mãe está partindo e tu nem te importas! Vá logo despedir-te enquanto é tempo!" Entrei no quarto, hesitante, temerosa, e... assustei-me. Minha mãe parecia um cadáver ainda vivo, branca como cera, os olhos encovados, pele sobre os ossos, e virando lentamente o rosto, estendeu-me penosamente os braços. Permaneci paralizada junto a porta: eu tive medo e não me aproximei ao seu apelo. Ela, então, deixando cair os braços soltou um longo suspiro, um estertor, e paralisou-se como um instantâneo. Então fugi dali correndo, e sinto que estou fugindo, correndo ainda hoje. Quanto remorso eu sentiria pela vida afora! A Açoriana... minha mãe, queria tocar-me, abraçar-me, que sei eu? Eu eu fugi. Ela me perdoara, ela me amava... e eu não pude dizer que também a amava... (Alma Welt)