terça-feira, 15 de novembro de 2016

O marido de minha amiga ( crônica de Alma Welt)

"Uma amiga minha tinha um marido que alguns achavam mesquinho e invejoso, e não viam nele grandes qualidades, apenas a obrigatória honestidade de um pai de família. Entretanto esse homem, desenvolvendo um câncer, hospitalizado, com metástase, desenganado, demonstrou uma das maiores coragens e dignidade que já vi em alguém: não se queixou nem um pouco, em nenhum momento, e seu último desejo foi uma média com pão e manteiga na chapa. E morreu sem um suspiro, como um cordeiro." (Alma Welt)

terça-feira, 4 de outubro de 2016

O rapaz do livro ( crônica de Alma Welt)

Um dia, quando eu era ainda guria, meu pai recebeu uma misteriosa visita, um jovem bem vestido e com um livro na mão. Meu pai, o levou imediatamente ao seu escritório, onde ficava (e ainda fica) sua imensa biblioteca. Meu pai trancou a porta, não deixando que eu presenciasse a conversa. Eu, muito curiosa, cheguei a colar o ouvido na porta, mas não pude distinguir as palavras. Afinal quando a porta se abriu, o rapaz saiu com o livro, parou na minha frente, me olhou, e disse: "Então, tu és a Alma?" - "Sim - eu disse- E tu quem és?" O rapaz demorou uns segundos e respondeu em voz baixa: "Sou teu irmão, mas infelizmente não nos veremos mais." Tocou-me o queixo levemente com a ponta dos dedos, virou as costas e saiu para montar seu cavalo e partir. Fiquei atônita e depois pensativa por alguns dias. Então, um dia perguntei ao meu pai: "É verdade, Vati, que aquele moço era meu... irmão? E meu pai contra-arguiu: "Como? Ele te disse isso?" Não, filha, não pode ser... Ele a mim disse ser um parente distante e que quis me conhecer pelo livro que escrevi, que apreciou e veio pedir o meu autógrafo. Agora você me deixou intrigado..." Quanto a mim, resolvi naquele instante que um dia resolveria aquele mistério, porque eu sabia que meu pai podia ignorar algo, mas jamais mentir...
Aos meus dezesseis anos minha mãe morreu, e depois de um período de sofrimento e remorsos, me senti livre para ir, de alguma forma em busca de meu meio-irmão perdido, de que me dei conta de que nem sequer sabia o nome. Mas perguntando ao meu pai ele se lembrou pois fizera uma dedicatória a ele no livro, o que o ajudou a lembrar: Bruno, e com alguma dificuldade o sobrenome, Álvares, certamente de sua mãe. Eu me lembrava de seu belo rosto, e na verdade, isso me atraíra e agora mais me motivava. Precisei de um ano e meio de pesquisas, começando por interrogar meu pai quanto ao seu passado, o que não chegou a ser constrangedor, devido à grande abertura que ele tinha comigo, pela nossa imensa afinidade. Então, um dia, já com dezoito anos, pude fazer uma viagem a Porto Alegre para encontrar o irmão que eu já sentia amar. Cheia de emoção, toquei afinal a campainha de um predinho de seis andares e ouvi uma voz feminina perguntando quem era. " Sou Alma", respondi, "quero falar com o Bruno". A porta se abriu com um zumbido, entrei e subi quatro andares pela escada. Ao chegar, a porta estava aberta e uma bela moça com um bebê no colo me recebeu com lágrimas nos olhos. Estendeu-me a mão e me abraçou com o bebê e tudo, soluçando. Eu tinha chegado tarde demais...
Letícia, era o seu nome, e depois do comovido abraço me fez entrar e sentar-me num modesto sofá. O bebê começou a chorar e ela o balançava e andava um pouco de um lado para o outro. Quando o bebê se acalmou ela o levou para o quarto, o colocou no berço e passado uns minutos voltou e sentou-se numa poltrona à minha frente. "Pois é, Alma... Bruno se foi..." E caiu em prantos novamente! Atônita eu perguntei: "Mas o que foi que aconteceu?". Letícia enxugou os olhos com as palmas das mãos, e disse: "Pra mim, é como se tivesse morrido... " Confesso que suspirei aliviada, Bruno estava vivo! Eu precisava saber o que estava acontecendo... aliás eu precisava saber tudo, desde o começo, pois na verdade eu não sabia nada. Não sabia de sua mãe e dele depois da aventura que meu pai acabou me contando alguns meses antes.O Vati me confessou que quando jovem tivera uma fase de boemia em Buenos Ayres e sendo um amante de ópera e frequentando o Teatro Colón acabara conhecendo uma soprano de coro, muito bela e tivera um caso fugaz com a moça. Quando o caso acabou, depois de alguns meses, por infidelidade de ambos, meu futuro pai voltou para o Vale do Itajaí onde se casou com minha mãe, Ana Morgado, da colônia açoriana, sua namorada de adolescência, e se aquietando, resolvido a ser fiel para o resto de sua vida. Muita água correu até meu pai mudar-se com minha mãe em final de gravidez para Novo Hamburgo, numa viagem de carro onde nasci na relva do acostamento, num parto natural em que meu pai foi o parteiro, cortando o cordão com um canivete suíço desinfetado com Steinhegger, numa despedida de meu pai a essa bebida, que ao que parece, o desviara bastante na juventude. Ele nada mais soube de sua breve amante, e minha mãe nunca soube dessa aventura de meu pai. Para ela a fase de Buenos Ayres era como uma um pouco longa despedida de solteiro de seu noivo. Mas... voltando àquele momento, eu precisava saber o que acontecera, já que meu irmão, ao que parecia, estava vivo e desaparecido...
Finalmente, Letícia se dispôs a contar o que acontecera com Bruno. Ela disse: "Estávamos vivendo bastante mal desde que o bebê nasceu. Faltava dinheiro, Bruno não ganhava o suficiente com seus escritos para um jornaleco, vivia insatisfeito, frustado, e brigávamos a todo momento. Foi então que apareceu aqui um rapaz que disse ser seu meio-irmão, um aventureiro cheio de charme e sedução, vivia do jogo de poker e viajava pelo mundo, de cassino em cassino e dizia ganhar fortunas.Exibia grandes rolos de notas." (Tive um arrepio! A descrição batia com o perfil de Rodo, meu irmão...) "Como se chamava esse guri?"- perguntei ansiosa. "Rudolph", ela disse. "Bruno estava hipnotizado e resolveu partir com ele, à aventura, para fazer fortuna com o poker, veja só... Seu desespero se juntara ao fascínio daquele demônio, que prometia ensinar todos os truques que lhe trariam fortuna e também o glamour de uma vida tão diferente deste pequeno apartamento e do nosso cotidiano. Não consegui convencê-lo de que aquilo tudo era um sonho. A Ferrari vermelha estacionada lá em baixo, à nossa porta, superava os meus argumentos. E ele, um dia se foi. Eles se foram juntos, e já faz um mês que não tenho notícias de Bruno. O tentador o levou... "
Eu estava estarrecida, Rudolph é o verdadeiro nome de Rodo, meu irmão, que cresceu junto comigo. Praticamente só eu o chamo assim desde crianças. Sua natureza de aventureiro e jogador só não foi considerada irresponsável pela família devido ao seu sucesso como jogador excepcional, mestre do blefe. Sim, por ser bem sucedido, isto é, ganhar muito dinheiro . Mas também devo dizer, por ter uma boa índole e um grande coração. E Isto eu podia testemunhar. Nada estava perdido. Não fora o demônio, fora um anjo destemido e aventureiro! Os irmãos estavam juntos! Eu ofegava, de alívio e alegria. Gritei de repente: "Letícia, nada temas! Teu Bruno voltará, com muito dinheiro! Eu sei, eu sei!" enquanto a abraçava, loucamente..."
Letícia, espantadíssima, por um momento me repeliu, pensando estar diante de uma louca. Mas eu disse: "Letícia, minha irmã... Posso chamá-la assim? Rudolph é o meu irmão Rodo, e ponho minha mão no fogo por ele. Os irmãos estão juntos! É tudo verdade, o ciclo se fecha! Deus é grande! Vê: O sangue se atrai, as almas também! Eles tinham que se encontrar. Rodo sempre esteve um passo à frente de mim, no fluxo da vida. Eu fui sempre a retaguarda, a testemunha, escrevendo, escrevendo. Eu mesma fui com Rodo por algum tempo pelos cassinos, em aventuras, perigosas às vezes, confesso. Mas ele me protegia como um anjo, e voltei sã e salva. Não era a minha verdadeira natureza, e renunciei a essa vida de aventuras. Mas se Bruno é um escritor, também renunciará, voltará. Não temos a natureza de pessoas de ação. O importante é que Rodo o protegerá daqui por diante, e a ti e ao teu bebê também. Eu garanto. Eu mesma quero protegê-los também, como meus novos irmãos. Aceitas? " 
Leticia, relutantemente, gradativamente, se deixou abraçar. E juntas fomos olhar o bebê, que dormia lindamente no berço...
FIM

sábado, 17 de setembro de 2016

A hospedeira mineira (crônica de Alma Welt)

Minha hospedeira mineira me falou assim no café da manhã: "'De madrugada, acordei sem sabê porquê, tive uma insônha, o galo cantava, o cachorro latiu, levantei fui até a cozinha. Tinha umas brasa no fogão, acendi um pito, tinha um poco de café frio no bule dei uma requentada, botei na caneca e fiquei ali na porta aberta da cozinha olhando o terreiro escuro, nevoado, fiquei ali assuntando, assuntando, a névoa foi baixando, as estrelas aparecero e umas nuvens; sapos cantando, grilos cricrilando, as galinhas ciscando... Vai chuver, não vai chuver...Tava loca procê acordar pr'eu falar dotros assunto!... (Alma Welt)

Egotista Sublime (crônica de Alma Welt)

"Escrever é a suprema afirmação do eu... do ego, se quiserem. Por isso quase todo mundo escreve, inclusive alguns analfabetos. Entretanto, paradoxalmente, os melhores livros são os que escondem o ego do autor e dão vida a personagens totalmente diferentes dele mesmo. Sou insuspeita para dizer isso pois sou uma escritora confessional, sempre na primeira pessoa, falando sempre de mim. O que me justifica? Descobri com o famoso crítico inglês Herbert Reed (já falecido) que pertenço a um tipo de poeta classificado por ele como " o egotista sublime" , isto é, parto de mim mesma para atingir uma universalidade. "Fale com profundidade e graça de sua aldeia e conquistarás o mundo inteiro". Fale de si com absoluta sinceridade e desnudamento, e atingirás o universal..." (entrevista com Alma Welt)

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Os segredos da biblioteca de meu pai

"Ainda quando criança, eu costumava entrar na biblioteca de meu pai, escondida, quando ele não estava em casa, para olhar as lombadas dos livros e descobrir alguma coisa espantosa, uma espécie de segredo camuflado. Bem... quase tudo o era. Eu retirava aleatoriamente ou pelo titulo sugestivo, somente um deles da estante, de cada vez, e o folheava a esmo lendo algum parágrafo. Era como olhar por uma fresta, o mundo se abria. Eu iria ler tudo, eu me prometia. E eu iria escrever também, porque não poderia haver nada mais secreto. E os segredos, me parecia, eram feitos para serem descobertos por pessoas como eu, que prometia passá-los adiante sem traí-los..." (Alma Welt)

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Pensando a vida (Crônica de Alma Welt)

"Penso muito na vida e no mundo de uma maneira geral, não pessoal, isto é, com um distanciamento senão crítico, de espectadora. Me parece sempre que estou do lado de fora, e que a minha vida mesma pertence a uma outra esfera, mais monótona, bucólica e de uma solidão romântica às vezes dolorosa. Não sei porque sou assim, pois, afinal, tendo duas irmã mais pragmáticas e um irmão ousado e aventureiro, não deveria me sentir assim, fora do mundo verdadeiro, como se vivesse num sonho plausível, ligeiramente melancólico. Rodo, meu irmão, muitas vezes me arrastou para aventuras, na nossa infância, em que eu não me entregava totalmente, talvez por causa da minha admiração por ele, por seu entusiasmo e simplicidade. Minha natureza de poeta e escritora sempre foi contemplativa, e me impede de me integrar com o ambiente humano ao meu redor. Serei uma romântica como George Sand como escritora? Estarei vendo este Pampa e estes peões que me circundam, "os gáltchos" e gaudérios, de maneira idealista, ou mesmo folclórica? Não sei... O mundo vai julgar. Sei que sou sincera e derramo as palavras como elas me vêm, embora cultivadas e não rudes como esses simpáticos machões que me circundam, com suas falas altas e sonoras, com sua bombachas, bigodes e chimarrões. E até com seus sinistros punhais adormecidos nas faixas que envolvem suas cinturas..." (Alma Welt)

Minha vida dentro da Alma (crônica de Alma Welt)

"Quando guria eu pensava no Mundo como algo que só existia muito longe de casa e do qual eu ficava sabendo pelos livros, isto é, pelos romances. E o mundo era muito grande, variado, e abarcava todas as épocas ao mesmo tempo. Isso, como sensação, me acompanhou a vida toda, pois me sinto sempre preenchida de todos os séculos, simultaneamente, desde a era dos egípcios, gregos e romanos. Báh! Dos Judeus também... Gosto muito de Adão e Eva, que me comoveram bastante. Eu os teria acolhido, expulsos que foram injustamente por uma besteirinha do roubo de uma fruta, assim pensava eu... Mas eu gostava mesmo era do Odisseu, com cujo espírito aventureiro eu me identificava ao mesmo tempo que com a Penélope que ficava em casa fiando e esperando. Me parecia ser um e outro "simultaneamente", embora eu não conhecesse essa palavra. Muito mais tarde vim a compreender que esse era o meu dom e maldição, que me fazia viver de verdade, quero dizer, intensamente, somente através da Arte, como se num arremedo da vida, num palco de minha própria alma..." ( Alma Welt)

A Espera (crônica de Alma Welt)

"Quando criança perguntei ao meu pai: "Vati, o que é Esperança? Eu vi essa palavra num livro, mas acho que não entendi bem o que ela é... " Meu pai parou um pouco o que fazia, me olhou e disse, ternamente como sempre: "Alma, a Esperança é um sinal de que a gente não está feliz..A gente só sente esperança quando as coisas não vão nada bem e estamos esperando alguma mudança. Não é o teu caso... É, filha?" Eu pensei um pouco e acho que menti: "Não, Vati, só me lembro de esperar o Natal quando ele está perto. Mas é para ficar mais alegre ainda." Meu pai me olhou lindamente e passando a mão no meu rosto, ficou embargado, eu vi nos seus olhos..." (Alma Welt)