quinta-feira, 29 de março de 2012

Ouro no Cascalho (mini-crônica de Alma Welt

Vocês já repararam num tipo de sonho que ocorre com frequência em nosso sono noturno, absolutamente banal, realista, mesquinho, sobre trivialidades muitas vezes técnicas, afinal idiotas, e que parece podermos conduzir sem levar a bom termo? Eu os chamo de "falsos sonhos"... Nitidamente sem nenhum caráter simbólico, somente sua finalidade permanece misteriosa. Entretanto se passam no inconsciente pois vão se evolando também, como os sonhos interessantes, ao acordarmos, e se dissipam. Não conseguimos mais lembrar do que se tratava, restando somente a impressão de sua absoluta falta de propósito. Nunca ouvi menção a eles nos tratados de psicologia, e eu hesitaria, por vergonha, em levá-los a um psicanalista, se o tivesse. Imagino que um analista diria que os estou subestimando e que deveria me esforçar para lembrá-los e trazê-los às sessões, e que os estou recalcando justamente por sua importância... Mas não. Creio que o nosso inconsciente também armazena bobagens, futilidades. Sua riqueza é como ouro no cascalho. (Alma Welt)

terça-feira, 13 de março de 2012

A Cordinha (crônica de Alma Welt)

Quando fui internada na Clínica ....* , como todo paciente, perdi a minha autonomia e liberdade, e era tratada de maneira indisfarçada, como louca. Eu tinha sido encontrada a vagar pelo meu bosque, esfarrapada, seminua e arranhada. A primeira providência depois das doses cavalares de tranquilizantes ou anti-depressivos (e um invasivo exame de corpo de delito) e o diagnóstico antiquado de "ninfomania" e histeria (!!) foi enfiarem-me num camisolão informe, sem cintura, e calçarem-me umas pantufas infames. Senti que o objetivo, consciente ou não, era enfeiar-me, tornar-me disforme, como um castigo. Então descalcei-me para exibir meus belos pés, e procurei uma cordinha qualquer para passar na cintura para ficar menos deselegante. Foi-me peremptoriamente negada pelas enfermeiras com olhares de desconfiança, e mesmo de censura. Cordas e cintos jamais! Então rasguei a barra do camisolão e improvisei com a faixa resultante um cinto que me ressaltou a cintura delgada. Isso me foi tolerado graças à minha Doutora Jensen, o meu anjo naquele inferno. Bem, mas passei a ser olhada de maneira estranha por um enorme enfermeiro... e por uma das moças da secretaria, aquela que afinal, em troca de meus beijos e carícias me ajudou a fugir para estrada onde peguei carona de caminhão para voltar à estância a tempo da festa de Ano Novo, pois o Natal eu passara numa absurda festa de "amigo secreto" entre os louquinhos. Já narrei nalgum lugar a saga desse retorno ao lar...(Alma Welt)

sexta-feira, 2 de março de 2012

Vida em versos (mini-crônica de Alma Welt)

Quando estou triste, na estância, minha boa Matilde aproveita para me censurar: "Báh, guria! Aí está em que te meteste! Ficaste solita, não tens marido nem filhos! Que querias?" E eu suspiro e respondo: "Má, não me queixo disso! Não é marido que me falta, nem filhos... É que penso muito na morte e tenho uma pena imensa de deixar este Pampa, e até você, minha bá... " E ela retruca: "Besteira, guria, não me enganas! Se tivesses filhos já terias tua continuação, nem pensarias nisso e pararias com esses versos, que isso, sim, te mata aos poucos!"
Eu me calo e medito sobre suas palavras e no que elas contêm de verdade. Sim, os versos estão me matando à medida que mais vida lhes dou. Já não sou senão a minha poesia, não mais existo sem ela. Na verdade já posso morrer... (Alma Welt)