sábado, 15 de março de 2008

A Peregrina

(crônica de Alma Welt)

Hoje, domingo, acordei com o som de uma trombeta, ao longe, e saltei da cama, desperta e eufórica. Corri para a pia do meu banheiro e joguei água no rosto, apressadamente escovei os dentes e os cabelos, enxuguei o rosto, e sem tomar a minha ducha, vesti um vestido folgado pela cabeça, sem calcinha, calcei minhas sandálias e desabalei pelo jardim, correndo em direção ao bosque. Eu ia tomar o café da manhã com Rafisa! Minha amada cigana Rafisa estava lá, me enviando a nossa senha sonora.

Ali, na beira do bosque, de longe ainda a avistei ao lado do seu carroção estacionado, com sua saia longa sarapintada, acocorada ao lado de uma fogueirinha com uma armação onde fumegava uma chaleira.

Cheguei gargalhando diante dela já erguida de braços abertos, e rodopiamos agarradas e aos gritos de alegria. Minha linda cigana! Que deslumbramento quando ela vem!

Rodamos tanto que caímos sobre a relva, aos beijos, ávidas de nossos carinhos. Logo estávamos de mãos dadas entrando pela parte traseira do carroção para nos possuirmos sobre seus tapetes caucasianos entre os almofadões. Eu a despi, beijando cada parte descoberta e quando cheguei no seu ventre moreno, encontrei-o um tanto proeminente. Minha Rafisa estava grávida! Toquei-a, acariciei sua barriga e seu púbis crescido, sua ampla vulva alongada. Ela toda se preparava! Eu estava perplexa. Então ao retirar-lhe a blusa bordada, reparei em marcas nas suas espáduas, no seu lindo torso, outrora sedoso, agora marcado, lanhado, cicatrizado. Encarei-a tremendo, ofegante, e perguntei-lhe:

–Rafisa, o quê é isto, quê fizeram contigo?

E ela respondeu depois de um silêncio:

—Foi um teu vizinho distante, o estancieiro Rafael Contardo, que mandou me açoitar.

–Rafisa! Como! Que dizes? Ah! Aquele canalha! Como foi isso? Por quê, Rafisa? Que horror!

—Eu tinha, numa vez anterior, em sua estância, lido a sua sorte e tendo visto isso disse a ele que a mulher mais importante de sua vida ia deixá-lo. Ele ficou abalado e foi trancar a mulher em casa. Pouco depois a sua filha, guria de 18 anos, fugiu de casa já que ele estava concentrado vigiando a mulher, e foi para Porto Alegre, de onde sumiu, presume-se que foi para São Paulo ou Rio, talvez para o exterior. Sem saber de nada, quando passei de novo por lá, depois de meses, ele me aprisionou, com dois capangas, me desnudou e amarrada num umbu mandou que me açoitassem. Em seguida, eu quase desmaiada, ele ordenou aos seus homens que me violassem. Eles fizeram isso, apesar de meus gritos e maldições, por muitos minutos intermináveis, revezando-se, enquanto o Contardo observava e ria. Depois me arrastaram, me jogaram no carroção assim pelada e chicotearam minha égua que saiu desabalada, sem rumo. Agora, passados meses, estou assim, embuchada, e não sei de qual dos dois peões estou prenha. Mas tanto faz... a criança, o inocente, é bem vindo e não saberá nunca o pai que nem tem. Não chores, minha Alma, não estou infeliz, pelo contrário...

Eu chorava e chorava, acariciando a sua barriga e beijando, beijando aquela criança, a ciganinha que nasceria e que eu gostaria de criar junto com a minha Rafisa, sim, por essas estradas, desse Brasil sem fim, tão cruel às vezes, mas que era nosso, mais dela do que meu, peregrina e vidente que ela era dos destinos alheios, alheia ao seu próprio triste e belo destino.

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