sábado, 31 de dezembro de 2011

A Viajante do Tempo (de Alma Welt)

"Quando eu era guria, ainda pequena, meu pai me levava a todas as partidas e chegadas na nossa estaçãozinha pampiana, no que dizia respeito aos de nossa família, amigos ou hóspedes do casarão. A locomotiva a vapor e o comboio eram para mim um deslumbramento, pura magia, mais relacionada com o Tempo do que com o espaço. As pessoas sumiam e voltavam naquela máquina mágica envolta em vapor como uma névoa, em meio a silvos e apitos, e que certamente as levava para um outro mundo (uma outra dimensão, eu diria hoje). Meu pai, com isso, queria que eu me preparasse de algum modo para ser uma viajante, uma cidadã do mundo, e me projetava em sua imaginação nas estações ferroviárias da Europa, que ele conhecia tão bem. Cresci, viajei, afinal... Mas minha sensibilidade e coração permaneceram viajantes do Tempo, portanto da imaginação que me levava a todos os mundos, a todas as partidas com suas dores e saudades, a todas as chegadas com sua alegria e emoções do reencontro. Creio que foi a estaçãozinha que me ensinou a amar o mundo, para além do grande ninho familiar, do casarão..." (Alma Welt)

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Uma outra vida (Alma Welt)

O espetáculo do poente visto daqui da minha varanda, que sempre me foi abismal, aqora me deixa mais triste do que nunca e saudosa de tudo. Choro pela beleza de tudo, enfraqueço-me e não sou capaz de gerir esta estância, nem sequer esta casa cada vez mais vazia, e tão cheia de memórias e espectros...

Matilde, às vezes vem se sentar ao meu lado na varanda, suspira e me censura: "Alma parecemos duas velhas, no fim da vida... Mas tu, jovem de corpo, como te deixaste envelhecer assim, no coração? Bah! Quanto insisti que te casasses e tivesses filhos! Eles estariam brincando nessa relva aí em frente e ouvíriamos seus risos e gritinhos! Mas agora, vê: ouve esse silêncio a que nos condenaste, guria má! Brinca! Brinca agora com teus versos! "

Então choro, abraço minha bá e choro... pela beleza de tudo, pela beleza deste momento. Pela beleza dolorosa de minha solidão de poeta... E pela outra vida, a que não tive... e que seria tão linda... (Alma Welt)

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A Queda da Casa de Welt (crônica de Alma Welt)

Quando chego de viagem, de volta à estância, noto-lhe a nítida e progressiva decadência. O casarão, o vinhedo e sua modestíssima produção, tudo está se arruinando como a queda da Casa de Usher* embora com sabor pampiano, riograndense. Já me vêm vagando nas noites assombradas, pois que realmente os fantasmas farroupilhas cada vez mais se alvoroçam com a presença desta última romântica tardia e delirante, que sou eu. Matilde não pára de acender velas todas as noites, e tantas, que extrapolaram há muito o âmbito de seu quarto ou da cozinha e invadiram o salão e até os quartos desocupados, vazios. Corremos o perigo de um incêndio, é o que temo...
Eu digo à Matilde: "Mulher, para quê tantas velas? Umas poucas não bastam? Não é a tua devoção que conta? O que queres? Com quem te relacionas em tuas preces, que tantas velas exige?" E ela responde: "Não sabes, guria? Com os espíritos que tu chamas a cada poema teu que escreves. Eles te cercam e eu os vejo cada vez mais e como te querem, minha niña, como cobiçam o teu belo, triste e atormentado coração. Então não vês que esta ruína que nos ameaça se deve a ti mesma?" (Alma Welt)

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Retardos (Alma Welt)

Quando eu tinha uns quinze anos perguntei ao meu Vati o quê eram as prostitutas e o quê elas faziam. Meu pai me olhou bem, pensou um pouco e disse: "Alma, as prostitutas são mulheres bonitas ou não, que entregam seu corpo a homens desconhecidos, diariamente, por dinheiro, profissionalmente, para sobreviver... Entretanto estudos científicos revelaram que a maioria delas sofre de um certo retardamento mental. As mulheres inteligentes não escolhem essa profissão."
Dei-me por satisfeita com essa explicação. Passados alguns anos me dei conta de que meu pai mencionando a suposta pesquisa científica sobre a debilidade mental das prostitutas pensava evitar que eu me prostituisse um dia, pois ele bem percebia a minha sensualidade à flor da pele e temia a vulnerabilidade da minha beleza. Ele tinha razão. Anos depois pensei várias vezes em me prostituir, não por amor ao dinheiro mas pelo amor da experiência e mesmo da transgressão, já que minha mãe e Matilde eram grandes repressoras sexuais. Por quê não o fiz? Por receio de que meu pai, onde quer que estivesse, pudesse considerar-me retardada...

domingo, 4 de dezembro de 2011

A dádiva do Tempo (de Alma Welt)

Quando chegávamos de viagem na estação do trenzinho Maria Fumaça que servia a nossa região quando eu era guria até meus 15 anos, nosso fiel Galdério ia me buscar de charrete, e me trazia sozinha com ele enquanto nosso Vati levava os outros de carro, com as malas. Era esse o nosso acordo, permitido por meu pai, que sabia o quanto eu gostava de fruir com calma e lentamente a paisagem inigualável da coxilha. Às vezes chegávamos ao casarão com o pôr do sol, e eu, comovida, adentrava o salão já em lágrimas para cair nos braços receptivos da Matilde, nossa cozinheira, minha eterna e fiel ex-babá. Ela exclamava: "Minha guria! Como está guapa! Um pouco magra, mas vamos cuidar disso!"
Esse ritual dura até hoje, e eu sentiria falta de qualquer detalhe, como uma criança que quer que repitam a mesma estória antes de dormir, palavra por palavra, e que não falte uma sequer... Sim, às vezes me ocorre que as coisas queridas exigem fidelidade, porque elas também nos amam. Sim, as coisas nos amam... as palavras, as paisagens e o próprio Tempo! Estamos aqui por sua dádiva e ao seu seio voltaremos um dia...

Penélope do Pano Verde (Alma Welt)

Uma vez, ainda bem jovem, meu irmão Rodo chegou de viagem pela primeira vez dirigindo um carro esporte, um Porsche. Nós em casa já conhecíamos sua habilidade com as cartas, mas aquilo nos preocupou. Toda a sua futura vida de aventuras perigosas, de riscos inimagináveis e de lances duvidosos se descortinou aos olhos de nossa família. Afinal, como conseguira ele um carro caro como aquele? Ele nos disse simplesmente que o ganhara no jogo de poquer, honestamente. Depois, com o ouvido colado na porta da biblioteca pude ouvir meu pai dizendo a ele que aquilo não era ganhar a vida honestamente, que aquele carro fora praticamente roubado. Mas era tarde demais... Rodo andaria pelo mundo como um cometa, elegante, cosmopolita, cada vez mais frio e silencioso, mas tão belo que eu o reconheceria sempre como o príncipe menino do meu coração infantil. Eu passaria a vida esperando por ele, como uma Penélope do pano verde, eternamente fiando e desfiando a minha teia de sonetos... essa seria a essência verdadeira do meu amor, da minha vida de mulher... de poeta..." (Alma Welt)

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

O Final da Estória ( Alma Welt)

Quando eu era uma guria de uns sete anos, tendo estado pela primeira vez num velório e visto um defunto, o de um velho "gaucho" daqui da estância, perguntei ao meu Vati, por quê as pessoas morriam e o quê acontecia depois. Meu pai ficou pensativo, coçou a barba e disse: "Filha, ninguém sabe. É um grande mistério... Mas, acho que as coisas são assim para que a gente fique procurando saber e assim se instrua e aprenda muita coisa durante a vida. Se a gente já soubesse desde o começo, ninguém ia querer saber de mais nada." Então eu tornei a perguntar: "Mas a gente fica sabendo no final, como as estórias, não fica?" E ele: "Bah! guria, fica! Mas quem chega lá não conta pra não estragar a estória pros outros."
Creio que a partir daí passei a prestar mais atenção às estórias da vida...

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Testamento Espiritual da Alma

"Tendo registrado em arte e beleza cada passo meu na minha passagem por esta vida, nem por isso me sinto pronta para partir, e dói-me saber a morte tão próxima. A razão disso é que não posso conceber belezas maiores do que as que me foram prodigalizadas pelo Destino e as que eu mesma construí ao longo dos meus breves 35 anos. Desde já a saudade deste Pampa, deste horizonte infinito, destes poentes gloriosos, a memória amada de meu Vati, de minha difícil e não menos amada Açoriana, do meu adorado irmão Rodo, de minha irmã Lucia e dos meus fiéis Matilde e Galdério, do casarão assombrado de memórias muito antigas, a peonada e as trabalhadoras da vinha, meu jardim, meu bosque, minha macieira sagrada do pomar, o poço da cascata... tudo isso me dói como um segundo exílio, peregrina perpétua que me sei, que só pude cantar a minha alma, conquanto suspeite que assim cantei o Mundo..." (Alma Welt)

"Having registered art and beauty in every step through this life, I am not yet ready to go, and it hurts me to know so close to death. The reason is that I can not conceive more beauty than have been so offered by Fate and also that I built myself during my brief 35 years. As long as the nostalgia of Pampa, this infinite horizon, these glorious sunsets, the memory of my beloved father and no less beloved but difficult mother Azorean, Rodo my beloved brother, my sister Lucia and my faithfuls Galdério and Matilde, the haunted house of memories from long ago, the gauchos and the maids in the vineyard, my garden, my wood, the sacred appletree in the orchard, the well of the cascade ... all that hurts me as a second exile, perpetual pilgrim, I know, I could only sing my soul, though suspect so I sang the world ... "(Alma Welt)