sexta-feira, 3 de julho de 2015

Encontro na coxilha (crônica de Alma Welt)

"Uma vez, aos dezesseis, caminhando pela coxilha, um peão gaúcho me alcançou e me segurou forte os dois braços. Encarei-o com tanta intensidade hostil que ele me soltou, virou-se e foi embora. Permaneci extática e esperei ele estar longe, para então desmaiar. Fui encontrada pelo fiel Galdério que me trouxe nos braços desfalecida. Cabeças deveriam rolar, por assim dizer, mas o peão era um estranho, um forasteiro, não foi encontrado. Quanto a mim, tal esforço me custou três dias de cama. Difícil foi convencer a Mutti de que eu não fora estuprada, e restabelecida, me convenci de ser muito forte. Continuo passeando na coxilha até hoje, e nadando sozinha no "poço da cascata" como quando criança, com Rodo, confiante de que um raio "não cai duas vezes..." ( Alma Welt)
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Nota
Em 20 de Janeiro de 2007, a grande poetisa Alma foi encontrada morta, afogada, no poço da cascata, nua, com uma corda no pescoço ancorada a uma grande pedra. Estava no auge de sua beleza e talento. Até hoje existe dúvida se foi assassinato ou suicídio. Um grande mistério, por não haver no corpo sinais de estupro. A marca vermelha no pescoço, atribuída à corda e os arranhões na parte interna dos antebraços foram creditados pelos técnicos da policia ao escorregar da pedra ao ser largada, e não a uma desesperada luta. O velório nu da Alma sobre a mesa da sala do casarão, constituiu-se uma das coisas mais espantosas e inacreditáveis acontecidas no Rio Grande do Sul, mas atualmente é considerada um Mito, como de resto, a própria passagem da poetisa por este mundo. (Guilherme de Faria)
Visão (de Alma Welt)
Ser a musa eternizada do meu pampa!
Cantar, celebrar e endoidecer
De tanto amar até saltar a tampa
Do coração e da mente, e então morrer!
Nua, estranhamente, sobre a mesa
Estendida me vejo, uma manhã:
Um desfile silencioso me corteja
De peões, peonas e algum fã.
Mas olho o meu corpo de alabastro,
Absurdo e belo ali, e não à toa
Eu noto algo nele que destoa:
Sobre a alvura do pescoço bailarino
Uma faixa vermelha como um rastro
Da corda que selou o meu destino..
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quinta-feira, 18 de junho de 2015

A morte de um gaúcho (crônica de Alma Welt)

"Um manhã, quando eu era guria, vagando como de costume pela coxilha não muito longe do casarão, vi ao longe um cavalo selado, de cabeça baixa sem o seu cavaleiro. Intrigada, andei até lá e deparei com o corpo caído de um gaúcho . Ele estava morto, ostentando uma ferida no peito. Fiquei uns minutos ali, mais curiosa que perplexa, e então voltei ao casarão para avisar meu pai. De noite percebi minha mãe, a Açoriana, andando no corredor e abrindo levemente a porta do meu quarto para me observar. Eu estava insone, mas não, eu não tinha medo, mas uma curiosidade imensa de desvendar aquele enredo, assistindo àquele duelo e seus desdobramentos em minha mente..." ( Alma Welt)

quinta-feira, 11 de junho de 2015

O tamanho do mundo (crônica de Alma Welt)

"Uma vez, quando ainda era uma guriazinha fugi de casa, de manhã, para "conhecer o mundo". Atravessei o portão do jardim, depois a porteira e fui andando pela estrada da coxilha. Andei e andei, tanto que fiquei exausta e com fome. Sentei na beira da estrada e chorei de decepção do mundo e vergonha de mim mesma. Até que chegou o Galdério, de charrete, e me tirou daquela enrascada, dizendo com naturalidade: "Alma, vim só lembrar-te que está na hora do almoço. Vou voltar já. Queres uma carona?"
Meu fiel charreteiro era realmente sutil..." (Alma Welt)
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O tamanho do mundo (de Alma Welt)
Guria andei sozinha numa estrada
Aqui mesmo na estância, para ver
Aonde ela ia dar, e desastrada
Não cogitei da confusão que ia fazer.
Andei por uma hora e não acabava,
E já passava da hora de almoçar.
Pensei: mais uma hora pra voltar...
E sentando à margem mais chorava.
Então vi o Galdério na charrete
Que a mando do meu pai me procurava
E conhecia muito bem esta pivete
E levantando e enxugando o ranho
Eu disse: "Ah! Galdério, eu não contava
Com que o mundo tivesse esse tamanho..."

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Meu pequeno vigilante (crônica de Alma Welt)


"Tenho o hábito de acordar bem cedo e vagar pela coxilha que cintila lindamente em reflexos prateados seu orvalho da madrugada. Numa manhã dessas topei com um negrinho aqui da estância que me fazia pensar no Negrinho nosso do Pastoreio, embora nunca esteja pastoreando nenhuma rês. Ele disse logo: "Bom dia Dona Alma. Eu vejo a senhora de manhã todos os dias, mas me escondo atrás dos cupins por isso a senhora não me vê. Hoje tomei coragem e não me escondi." Surpresa, eu disse sorrindo: "Bom dia, Raimundinho! Mas que negócio é esse de me observar escondido? Não sabes que isso é feio?" Então ele sorriu meio envergonhado e respondeu: "Ah! Dona Alma... É que assim eu penso que estou protegendo a senhora, porque de perto e de frente é como se a senhora é que estivesse me protegendo, e não é certo." Fiquei olhando pra ele, comovida de ver que ele se conhecia tanto, capaz de expressar uma coisa como essa, que resumia toda a sua dignidade e fidelidade, com as quais eu poderia sempre contar..." (Alma Welt)

domingo, 24 de maio de 2015

Um segredo de meu pai (crônica de Alma Welt)

"Após a morte de meu Vati, fugi da estância, exilei-me muito longe, na cidade de São Paulo por quatro longos anos. No retorno passei a investigar no casarão, mais precisamente na biblioteca e escritório, as pegadas de meu pai, sua vida secreta de que eu suspeitava, seus segredos... Descobri na sua correspondência uma carta dele a um amigo, que revelava que ele tinha pelo menos uma outra filha de uma relação antiga, a qual ele nunca mencionou e que foi criada longe de nós pela mãe. Depois do choque tratei de por-me em campo para encontrar essa minha irmã. A primeira pessoa que interroguei foi, naturalmente, a nossa fiel Matilde, uruguaia de origem e nossa cozinheira, antiga na família e que fora minha babá. Matilde então disse: "Alma, esperei pacientemente este dia, porque prometi ao teu pai manter segredo durante sua vida, e que só revelaria a ti se fosse interpelada a esse respeito. Tua irmã é filha de uma cigana com quem teu pai viveu uma tumultuada paixão quando jovem. Não estranhavas que teu pai deixasse que os ciganos acampassem reiteradas vezes aqui na estância, para indignação dos estancieiros vizinhos, sempre ali junto do bosque? Tu os visitava desde guria, provavelmente conheceste tua irmã sem saber..." Arrepiei-me toda... Rafisa! Minha estranha atração por aquela bela e enigmática cigana! Nossa mútua fascinação, nossa inefável química... nosso amor! Só podia ser ela! Entretanto, nômade que era, minha irmã estava sumida no mundo." (Alma Welt)

domingo, 17 de maio de 2015

Códigos (crônica de Alma Welt)

"Um peão gaúcho, desconhecido, aproximou-se de mim a cavalo na coxilha, diante da nossa porteira, tirou o chapéu e disse querendo ser galante: "Buenas, prenda, quem é o peão macho que dá ordens por aqui? Já vi beleza, mas não vi uma bombacha até agora..." Olhei-o nos olhos e respondi: "Buenas, senhor, mas aqui os machos são servidores. Dê a volta por trás e fale com o meu capataz se quiseres emprego. Ele "le" reenviará a mim depois de uma primeira avaliação de macho para macho". O gaúcho sorriu, colocou o chapéu, o tocou, afastou-se e fez a volta em direção ao curral onde estaria o nosso Galdério. De longe observei-lhes a postura tensa e seu nada sutil código corporal de "machos". Dei um suspiro e continuei a colher flores." (Alma Welt)

domingo, 29 de março de 2015

O Ponto Mais Alto (crônica de Alma Welt)


"Uma vez, numa mesa de amigos num café em Porto Alegre, um de nós, que não eu, disse: "Perdoem os pintores, cineastas, músicos e etc, mas o Poeta é o mais alto da humanidade". Outro logo retrucou: "Não, estás totalmente enganado: o Santo é o mais alto". Começou uma acalorada discussão razoavelmente erudita entre aqueles dotados amigos, enquanto eu permanecia quieta, perplexa... "E tu, Alma? O que achas? Qual o ponto mais alto?" Respondi então: "A mãe. O coração maternal." Foi como água na fervura. Não esperavam algo assim, logo de mim que nunca me entendi bem com minha mãe e idolatro meu pai, como eles sabiam. Então um deles segurou minha mão carinhosamente, e virando-se para os outros levantou o copo e disse: "Vamos brindar a este momento, e à amizade que é o ponto mais próximo que, por ora, podemos chegar de um tal coração!"
Uma gargalhada geral distendeu os intelectos, e talvez também os corações..."
(Alma Welt)

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

O reino feliz de meu pai (crônica de Alma Welt)

 
Quando eu era guria, havia uma vizinha estancieira velha que explorava os seus empregados. Falecidos os meus avós, meu pai passou a pagar melhores salários aos nossos "gáltchos", acima dos praticados nas estâncias vizinhas, o que provocou uma corrida ao nosso casarão. Alguns peões abandonavam seus velhos patrões ou vinham escondidos sondar a possibilidade de novo emprego com meu pai, que frequentemente os dissuadia, por não dar conta de absorvê-los. Então, aquela velha estancieira montada a cavalo veio até diante de nossa varanda, ataviada como um gáltcho, de bombacha, botas, esporas e faixa com punhal de prata na cintura, chapéu de barbicacho, aba dobrada na testa. Sem apear-se, com um relho na mão (a outra na cintura) apontou-o para o meu pai ( este imponente, nunca me esquecerei, de pé na varanda) e disse-lhe alto:
-"Senhor "boche", o senhor está inflacionando os salários e roubando-nos nossos empregados. Isso é contra a lei, pare com isso ou vou à polícia, vou ao governo do Estado se preciso. O senhor está avisado!"
Olhei para o meu pai, esperando sua resposta, mas ele, impassível, nada disse. Para meu espanto tocou apenas o chapéu como um cumprimento e ficou vendo a velha se afastar arrogantemente. Eu era pequena e apesar de minha curiosidade, nunca soube o que aconteceu depois, já que meu pai não perdeu nem uma noite de sono, isso eu percebi. Como contornou ele a delicada a situação?
Muitos anos mais tarde perguntei diretamente a ele, que tomou um ar distante e disse lentamente:
- "Báh! Filha, aqueles foram tempos difíceis, de batalhas e escaramuças... muito sangue correu, mas estabelecemos nosso reino de cidadãos felizes."
E piscando-me um olho sorriu para mim, aquele sorriso maravilhoso...

(Alma Welt)