domingo, 23 de março de 2008

As gêmeas (de Alma Welt)


Detalhe do túmulo das Gêmeas


As Gêmeas
Crônica de Alma Welt)

Eu costumava descer a rua que ladeava o cemitério, observando apenas os ciprestes que se erguiam por trás dos longos muros. Sempre sinistros, os ciprestes...
Mas, naquela tarde, acompanhada de Ana, resolvemos fazer o caminho por dentro. Um passeio, isso mesmo, minha querida Ana...
Dentro dos muros, andávamos pelas alamedas a esmo olhando distraidamente os túmulos e mausoléus de uma feiúra acintosa. Pomposos. Alguns megalomaníacos mesmo, vocês sabem.
De repente, Ana se lembrou de algo. Ficou estranha e pôs-se a procurar, a rastrear alguma coisa na memória, eu diria mesmo a farejar. Eu seguia intrigada o seu olhar atento e seus passos rápidos no meio do labirinto. Ela parou diante do que, à primeira vista, pareceu-me uma parede negra.
— Alma, veja!, ela me disse com o olhar ardente. Decifre isso.
Era um muro de granito negro, polido, de uns dois metros de altura por vinte centímetros de largura. Liso, sem entalhes, nem enfeites, mas sobressaía-se uma estátua (uma escultura, melhor dizendo) de bronze, encostada numa das extremidades. Representava uma menina de seus doze anos, belamente esculpida, num estilo realista e moderno ao mesmo tempo, simples, sem planejamentos complicados, mas lisos de suaves pregas verticais. Incrivelmente viva como uma expressão de ansiedade eufórica, de expectativa confiante, quase um sorriso, os olhos muito abertos. As mãos encostadas nesse muro, paralelas ao corpo na altura de seus braços estendidos para baixo. Tudo indicava a atitude de espera ansiosa, uma brincadeira, talvez.
Do outro lado do muro negro, uma outra estátua, idêntica. Mas, noutra posição análoga, representando a mesma personagem com as mãos a altura da cabeça, de perfil, os joelhos dobrados em semi-genuflexão, o ouvido colado à parede, o mesmo olhar arregalado de tensão jocosa. Um olhar flagrante imortalizara o momento das duas pequenas brincalhonas e felizes. Idênticas, idênticas.
Na extremidade vazia do muro, uma pequena placa de bronze com versos inscritos em relevo fundido, em italiano, tirados de A Divina Comédia, que falavam vagamente de um reencontro nas estrelas...
Bem, o caso quase se oferecia, sugestivo, mas ainda um pouco misterioso.
Fui imediatamente, acompanhada por Ana, procurar o zelador do cemitério. Encontramo-lo, um velho de grandes bigodes de foca, plantando flores num túmulo a cem passos dali. Ele olhou-nos com olhos perscrutadores, azulados, gastos e respondeu às nossas perguntas com um sotaque italianado.
— Ah! Ah si, si!... Qüela tumba lá... Molta gente me pregunta. Qüilo desperta molta atençó. Si trata de due gêmela de l’inicio del sécolo. Uguale, uguale... que giocavam de esconde-esconde, nel silenzio da sala di musica, pega-pega, que sê io... Naquelo ‘nervo’ que ficaro, esperando, espreitando, de repente s’incontraro cara a cara e caíro morte le due, fulminate di susto, di alegria, qui sê io... Alora estan aí giocando per sempre gracie a uno escultore maluco e gente como voi, curiose. No sê no, si la famiglia...
Imediatamente, configurou-se-me toda a estória das duas meninas gêmeas idênticas, necessariamente belas, puras como lírios, que viviam sempre juntas, não precisando separar-se nem por um segundo, pois a simbiose era absoluta, a ponto de falarem, rirem e se espantarem ao mesmo tempo sempre. Alegres, sim, muito alegres, sempre brincando, dando-se as mãos para caminharem, para sentarem, até para se pentearem mutuamente com a outra mão. Vestidas rigorosamente iguais, pois o menor detalhe, se diferente, seria como uma ruptura e as poria em súbito choro inconsolável até que se arrancasse o adereço ou se lhes trocasse imediamente a peça.
As pessoas, adultos ou crianças, que as viam pela primeira vez, esfregavam os olhos no primeiro momento ou sentiam ligeira vertigem. Os mais sensíveis tinham uma leve e súbita dor de cabeça.
É como se eu as conhecesse desde sempre. Dupla ânima, Reflexo do reflexo infinito da alma, necessárias como um momento de reflexão.
Seus pais tiveram a sensatez de dar-lhes um único nome ao nascerem. Por que haveriam de insinuar qualquer diferenciação? Sofia e Sofia, enfatizando a sabedoria inquestionável do Criador.
Não poderiam jamais crescer, tornarem-se moças, pois casá-las seria profaná-las na separação. E um só noivo... inconcebível, infelizmente.
Deveriam partir, imortalizadas, no granito e no bronze de um artista que se comovera, meditando longamente sobre a dupla visão que é dada ao homem sobre o Real.
Agora estão brincando eternamente na grande e misteriosa Sala do Piano de Deus.

Nenhum comentário: