terça-feira, 4 de outubro de 2016

O rapaz do livro ( crônica de Alma Welt)

Um dia, quando eu era ainda guria, meu pai recebeu uma misteriosa visita, um jovem bem vestido e com um livro na mão. Meu pai, o levou imediatamente ao seu escritório, onde ficava (e ainda fica) sua imensa biblioteca. Meu pai trancou a porta, não deixando que eu presenciasse a conversa. Eu, muito curiosa, cheguei a colar o ouvido na porta, mas não pude distinguir as palavras. Afinal quando a porta se abriu, o rapaz saiu com o livro, parou na minha frente, me olhou, e disse: "Então, tu és a Alma?" - "Sim - eu disse- E tu quem és?" O rapaz demorou uns segundos e respondeu em voz baixa: "Sou teu irmão, mas infelizmente não nos veremos mais." Tocou-me o queixo levemente com a ponta dos dedos, virou as costas e saiu para montar seu cavalo e partir. Fiquei atônita e depois pensativa por alguns dias. Então, um dia perguntei ao meu pai: "É verdade, Vati, que aquele moço era meu... irmão? E meu pai contra-arguiu: "Como? Ele te disse isso?" Não, filha, não pode ser... Ele a mim disse ser um parente distante e que quis me conhecer pelo livro que escrevi, que apreciou e veio pedir o meu autógrafo. Agora você me deixou intrigado..." Quanto a mim, resolvi naquele instante que um dia resolveria aquele mistério, porque eu sabia que meu pai podia ignorar algo, mas jamais mentir...
Aos meus dezesseis anos minha mãe morreu, e depois de um período de sofrimento e remorsos, me senti livre para ir, de alguma forma em busca de meu meio-irmão perdido, de que me dei conta de que nem sequer sabia o nome. Mas perguntando ao meu pai ele se lembrou pois fizera uma dedicatória a ele no livro, o que o ajudou a lembrar: Bruno, e com alguma dificuldade o sobrenome, Álvares, certamente de sua mãe. Eu me lembrava de seu belo rosto, e na verdade, isso me atraíra e agora mais me motivava. Precisei de um ano e meio de pesquisas, começando por interrogar meu pai quanto ao seu passado, o que não chegou a ser constrangedor, devido à grande abertura que ele tinha comigo, pela nossa imensa afinidade. Então, um dia, já com dezoito anos, pude fazer uma viagem a Porto Alegre para encontrar o irmão que eu já sentia amar. Cheia de emoção, toquei afinal a campainha de um predinho de seis andares e ouvi uma voz feminina perguntando quem era. " Sou Alma", respondi, "quero falar com o Bruno". A porta se abriu com um zumbido, entrei e subi quatro andares pela escada. Ao chegar, a porta estava aberta e uma bela moça com um bebê no colo me recebeu com lágrimas nos olhos. Estendeu-me a mão e me abraçou com o bebê e tudo, soluçando. Eu tinha chegado tarde demais...
Letícia, era o seu nome, e depois do comovido abraço me fez entrar e sentar-me num modesto sofá. O bebê começou a chorar e ela o balançava e andava um pouco de um lado para o outro. Quando o bebê se acalmou ela o levou para o quarto, o colocou no berço e passado uns minutos voltou e sentou-se numa poltrona à minha frente. "Pois é, Alma... Bruno se foi..." E caiu em prantos novamente! Atônita eu perguntei: "Mas o que foi que aconteceu?". Letícia enxugou os olhos com as palmas das mãos, e disse: "Pra mim, é como se tivesse morrido... " Confesso que suspirei aliviada, Bruno estava vivo! Eu precisava saber o que estava acontecendo... aliás eu precisava saber tudo, desde o começo, pois na verdade eu não sabia nada. Não sabia de sua mãe e dele depois da aventura que meu pai acabou me contando alguns meses antes.O Vati me confessou que quando jovem tivera uma fase de boemia em Buenos Ayres e sendo um amante de ópera e frequentando o Teatro Colón acabara conhecendo uma soprano de coro, muito bela e tivera um caso fugaz com a moça. Quando o caso acabou, depois de alguns meses, por infidelidade de ambos, meu futuro pai voltou para o Vale do Itajaí onde se casou com minha mãe, Ana Morgado, da colônia açoriana, sua namorada de adolescência, e se aquietando, resolvido a ser fiel para o resto de sua vida. Muita água correu até meu pai mudar-se com minha mãe em final de gravidez para Novo Hamburgo, numa viagem de carro onde nasci na relva do acostamento, num parto natural em que meu pai foi o parteiro, cortando o cordão com um canivete suíço desinfetado com Steinhegger, numa despedida de meu pai a essa bebida, que ao que parece, o desviara bastante na juventude. Ele nada mais soube de sua breve amante, e minha mãe nunca soube dessa aventura de meu pai. Para ela a fase de Buenos Ayres era como uma um pouco longa despedida de solteiro de seu noivo. Mas... voltando àquele momento, eu precisava saber o que acontecera, já que meu irmão, ao que parecia, estava vivo e desaparecido...
Finalmente, Letícia se dispôs a contar o que acontecera com Bruno. Ela disse: "Estávamos vivendo bastante mal desde que o bebê nasceu. Faltava dinheiro, Bruno não ganhava o suficiente com seus escritos para um jornaleco, vivia insatisfeito, frustado, e brigávamos a todo momento. Foi então que apareceu aqui um rapaz que disse ser seu meio-irmão, um aventureiro cheio de charme e sedução, vivia do jogo de poker e viajava pelo mundo, de cassino em cassino e dizia ganhar fortunas.Exibia grandes rolos de notas." (Tive um arrepio! A descrição batia com o perfil de Rodo, meu irmão...) "Como se chamava esse guri?"- perguntei ansiosa. "Rudolph", ela disse. "Bruno estava hipnotizado e resolveu partir com ele, à aventura, para fazer fortuna com o poker, veja só... Seu desespero se juntara ao fascínio daquele demônio, que prometia ensinar todos os truques que lhe trariam fortuna e também o glamour de uma vida tão diferente deste pequeno apartamento e do nosso cotidiano. Não consegui convencê-lo de que aquilo tudo era um sonho. A Ferrari vermelha estacionada lá em baixo, à nossa porta, superava os meus argumentos. E ele, um dia se foi. Eles se foram juntos, e já faz um mês que não tenho notícias de Bruno. O tentador o levou... "
Eu estava estarrecida, Rudolph é o verdadeiro nome de Rodo, meu irmão, que cresceu junto comigo. Praticamente só eu o chamo assim desde crianças. Sua natureza de aventureiro e jogador só não foi considerada irresponsável pela família devido ao seu sucesso como jogador excepcional, mestre do blefe. Sim, por ser bem sucedido, isto é, ganhar muito dinheiro . Mas também devo dizer, por ter uma boa índole e um grande coração. E Isto eu podia testemunhar. Nada estava perdido. Não fora o demônio, fora um anjo destemido e aventureiro! Os irmãos estavam juntos! Eu ofegava, de alívio e alegria. Gritei de repente: "Letícia, nada temas! Teu Bruno voltará, com muito dinheiro! Eu sei, eu sei!" enquanto a abraçava, loucamente..."
Letícia, espantadíssima, por um momento me repeliu, pensando estar diante de uma louca. Mas eu disse: "Letícia, minha irmã... Posso chamá-la assim? Rudolph é o meu irmão Rodo, e ponho minha mão no fogo por ele. Os irmãos estão juntos! É tudo verdade, o ciclo se fecha! Deus é grande! Vê: O sangue se atrai, as almas também! Eles tinham que se encontrar. Rodo sempre esteve um passo à frente de mim, no fluxo da vida. Eu fui sempre a retaguarda, a testemunha, escrevendo, escrevendo. Eu mesma fui com Rodo por algum tempo pelos cassinos, em aventuras, perigosas às vezes, confesso. Mas ele me protegia como um anjo, e voltei sã e salva. Não era a minha verdadeira natureza, e renunciei a essa vida de aventuras. Mas se Bruno é um escritor, também renunciará, voltará. Não temos a natureza de pessoas de ação. O importante é que Rodo o protegerá daqui por diante, e a ti e ao teu bebê também. Eu garanto. Eu mesma quero protegê-los também, como meus novos irmãos. Aceitas? " 
Leticia, relutantemente, gradativamente, se deixou abraçar. E juntas fomos olhar o bebê, que dormia lindamente no berço...
FIM

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