sábado, 12 de abril de 2008

A Hospedeira, ou Ao sul de mim mesma

Crônica de Alma Welt (1972-2007)

 Quando estou aqui na estância, às vezes me bate aquela angústia, e eu peço para o Galdério selar a minha égua baia e saio por estas pradarias em direção ao nada, ao sul... de mim mesma. E ponho minha montaria num galope doido, até a pobre ficar exausta e recusar-se a prosseguir nesse compasso. Aí, já estou muito longe do casarão, e meio perdida. Mas minha égua, Altamira sabe sempre retornar, e eu solto a rédea para ela nos conduzir, voltamos a passo, lentamente e chegamos em casa ao cair da noite. Entretanto, antes de ontem fui parar numa propriedade desconhecida para mim, com árvores frutíferas, macieiras, pereiras e cerejeiras em volta de um chalé modesto, mas encantador, com um ar acolhedor, com a chaminé fumegando, denunciando proximidade do jantar. Apeei, amarrei a rédea da minha égua na balaustrada da varandinha onde havia uma cadeira de balanço austríaca, bati à porta, esta abriu-se e uma senhora idosa, de cabelos brancos, rubicunda, de aspecto bondoso, com uma cara redonda vermelhaça, polonesa ou russa, me acolheu com olhinhos azuis e um sorriso que não se desfez mais. Como é que eu nunca soubera dessa vizinha? Ela me fez sentar à sua mesa e imediatamente, sem nada perguntar ou falar, colocou um prato fundo na minha frente e com uma concha, de um caldeirão, começou a me servir sopa. Eu nada disse, e sempre sorrindo também, comecei a tomar. E era deliciosa a sopa, tomei-a com prazer, acompanhada de um grande pedaço de pão. Ao terminar, agradeci, e ela imediatamente pegou-me pela mão e levou-me a um quarto, que tinha uma acolhedora cama arrumada, com uma linda colcha de retalhos coloridos e um grande travesseiro. Ela fez um gesto de dormir com as duas mãos do lado do rosto, sempre sorrindo. Eu já estava convencida que a boa senhora era muda. Então pedi um telefone, gesticulando como se ela fosse também surda e a senhora me levou de volta à sala, até um aparelho de madeira, antigo, de parede, em que consegui a duras penas ligar para estância, e avisei a Matilde que eu pernoitaria na casa de uma vizinha nossa e que só voltaria de manhã. Matilde quis saber mais detalhes, meio alarmada, mas eu logo desliguei, sem muitas explicações. A senhora então me pegou novamente pela mão, levou-me de volta ao quarto, e de pé diante da cama ela começou a despir-me com desvelo, meticulosa e carinhosamente como se faz com uma guria, uma filha, e estando eu somente de calcinha, ela enfiou-me pela cabeça uma camisola branca bordada, e colocou-me na cama para dormir. Eu permanecia curiosa com tudo aquilo, respeitando e retribuindo a mudez e o sorriso permanente daquela criatura, tanto que fechei logo os olhos enquanto ela apagava a vela, e realmente adormeci. Acordei bem cedinho, com o cantar de um galo, e sentindo-me maravilhosamente bem, repousada e sem vestígio da angústia da tarde anterior. Levantei-me e saí do quarto, de camisola, para ver a minha hospedeira. Não a encontrei. Procurei na casa, em torno dela, no pomar e... nada. Ela não aparecia. Esperei uma hora e... nada. Então chegou a Matilde na charrete, abanando a cabeça e dizendo: —“Guria, tu és doida mesmo. Pensei que se tratava da outra chácara, vizinha, da dona Estela. Lá estive e disseram-me que não sabiam de nada, que não estiveste lá. Que fazes aqui? Não sabes que esta casa está vazia ? A moradora faleceu há quase um ano. Como pudeste entrar e dormir aqui? A casa permanece fechada e deve estar uma sujeira aí dentro. Deixe-me ver. Matilde entrou comigo, viu o prato de sopa vazio ainda na mesa, o caldeirão sobre o fogão de lenha, o quarto com a cama desarrumada, e se pôs mais assombrada. Enquanto eu despia a camisola e vestia minhas roupas, ela dizia, inconformada: —Que estranho, a casa não está suja como eu pensava! Então dormiste aqui, nesta cama,com esta camisola? Quem te acolheu, Alma? Que mistério é esse, guria? Como era a pessoa que te acolheu? Eu descrevi a minha amável e nada loquaz hospedeira, sobretudo sua face “rubicunda”. Matilde empalideceu, fez o sinal da cruz, caiu de joelhos, de mãos postas e começou a tremer. Voltamos na charrete, puxando a Altamira pelo cabresto atrás e tremendo as duas. Meu corpo tremia, sim, mas durante todo o trajeto, meu coração, eu sentia, estranhamente preferia continuar sorrindo.

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